quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Ano novo a gente faz

"Para ganhar um ano novo que mereça este nome, você tem de merecê-lo, tem de fazê-lo novo. Eu sei que não é fácil, mas tente, experimente, consciente. É dentro de você que o ano novo cochila e espera desde sempre." Carlos Drumond de Andrade

Ano Novo. Tempo de pensar no que fizemos durante os doze meses que se passaram. Tempo de avaliar nossas atitudes e sentimentos. Novas amizades conquistadas. Amizades antigas fortalecidas. Amores solidificados. Saudades dos que se foram. Saudades dos que ficaram.

O novo ano que chega é comemorado por cada povo do planeta, segundo as suas tradições e costumes. A comemoração ocidental, no nosso caso, tem origem num decreto do governador romano Júlio César, que fixou o 1º de janeiro como o Dia do Ano Novo no ano 46 a.C. Dizem que, nessa data, os romanos comemoravam o dia do deus Juno, o rei dos portões.

O primeiro dia do ano é dedicado à confraternização. É o Dia da Fraternidade Universal. Lembranças de acontecimentos que nos marcaram profundamente e outros que nem tanto, mas que trouxeram leveza e paz. É tempo de festejar. Festa de confraternização com o outro. Festa de confraternização conosco.

Taças são erguidas. Brindes são feitos à vida, ao dinheiro. ao poder. ao amor e a tantas outras coisas. Espocam fogos de artifícios no ar. Luzes brilham com intensidade nas grandes cidades. Nos campos e nas matas, o brilho das estrelas se basta.

Não é tempo de lamentar as oportunidades perdidas, os projetos que não deram certo ou chorar os amores fracassados. É tempo, sim, de renovação.

É hora de pagar as dívidas e devolver tudo o que se pediu emprestado da vida ao longo do ano. Esse gesto reflete a nossa necessidade de fazer um balanço e de começar o ano com as contas acertadas.

Fazer a lista dos objetivos a alcançar no ano que se anuncia (e que, por certo, vai ser esquecida em um canto qualquer), beber champanha, reunir os amigos, preparar a ceia, usar a roupa de tal cor são hábitos saudáveis e gratificantes como tantos outros. Porém tudo isso por si só não basta.

Na verdade, para ganhar um ano novo que valha realmente a pena, nós temos de merecê-lo. Como diz o poeta, temos de fazer o novo despontar dentro de nós. E, para isso, não tem receita pré-testada. A mudança tem de vir de dentro, do mais íntimo de nosso ser.

É como uma semente que brota e ergue sua haste em direção ao sol. No âmago de seu ser há uma voz que lhe diz baixinho: “Cresça, cresça!”

domingo, 19 de dezembro de 2010

De pai para filha ou de filha para pai

“Até a pé nós iremos, para o que der e vier, mas o certo é que nós estaremos com o Grêmio onde o Grêmio estiver...”

Os versos do Hino do Grêmio Futebol Porto Alegrense, do compositor Lupicínio Rodrigues, traduzem o sentimento dos gremistas que não medem esforços para acompanhar e incentivar o seu time do coração.

Meu pai, que era um gremista autêntico, não fugia à regra. Nos domingos de sol, dia de jogo, a preparação para ir ao estádio Olímpico torcer, começava cedo. O almoço, preparado com capricho pela minha mãe, não podia atrasar. Depois, era colocar uma roupa confortável, o boné preferido (para não queimar a careca), pegar uma almofada bem fofinha para sentar e, é claro, não esquecer a bandeira.

Léo, o marido de minha prima Ione, também um super gremista, passava lá em casa, buzinava e gritava lá do portão: “Tá pronto Boticário? Vamos logo!” Não era preciso chamar duas vezes. Na hora marcada, meu pai – que valorizava muito a pontualidade e a palavra dada - já estava esperando pronto. E lá iam eles. Levavam também os dois guris, meu irmão e meu primo, que desde pequenos iam aprendendo a torcer pelo tricolor gaúcho.

Cresci vendo essa cena. Da janela, minhas irmãs e eu acompanhávamos a saída, com uma pontinha de inveja. Na época, as meninas não iam ao estádio, isso era coisa para homens. As mulheres ainda não haviam queimado os soutiens em praça pública...

À tardinha, quando voltavam, observávamos, curiosas, a fisionomia deles. Se as caras estavam fechadas, já sabíamos: o Grêmio havia perdido ou empatado. Se os sorrisos chegavam na frente, era sinal de vitória, A alegria contagiava. “E aí, pai, como foi? Conta todos os detalhes”.Ouvindo as histórias e incentivados por seu entusiasmo, fomos aprendendo a torcer e a sermos gremistas.

O engraçado era quando Léo contava as peripécias de meu pai durante os jogos. Nos Grenais, então, morríamos de medo de ele arranjar discussão com algum colorado. Porque ninguém podia falar mal do Grêmio.

Uma vez, contaram que ele queria brigar com um torcedor do Inter de quase dois metros de altura. Segundo testemunhas o cara era um verdadeiro armário. Mas para o bem de todos e a felicidade geral da nação tricolor a discussão não deu em nada. Quem conheceu meu pai sabe que ele era invocado, aliás, como todo baixinho e magrinho. Mas, com muito jeito, ele sempre acabava se livrando de maiores problemas.

O orgulho pelo Grêmio não era pouco. O estádio Olímpico havia sido inaugurado há poucos anos (1954) e o Grêmio vinha vivenciando um período áureo: 12 campeonatos em 13 disputados: o Pentacampeonato Gaúcho e Metropolitano de Futebol Profissional de 1956/57/58/59/60 e o Heptacampeonato Gaúcho de 1962/63/64/65/66/67/68, tornando-se o primeiro time, no Rio Grande do Sul a obter este título.

De lá pra cá, foi crescendo a torcida de toda a família pelo Grêmio. Pena que meu pai não chegou a ver as conquistas da Taça Libertadores (1983 e 1995) e do Campeonato Mundial (1983) e tantas outras taças levantadas.

Mas como tudo na vida, o sofrimento também faz parte da história de um gremista. Um exemplo foi a inesquecível partida da final da segundona em 2005, a famosa Batalha dos Aflitos, em Recife, onde o Grêmio conquistou o título, na partida contra o Náutico com sete jogadores em campo. Foi sensacional.

E o que dizer do campeonato brasileiro deste ano de 2010, quando o Grêmio estava em penúltimo lugar e chegou ao final em quarto lugar ,com a melhor campanha do segundo turno e o goleador do campeonato: Jonas. Só o Grêmio mesmo consegue essas façanhas.

Aprendi com meu pai que ser gremista não é simplesmente torcer por um time. É acreditar. É ter força para superar as dificuldades e encarar as derrotas como um ensinamento. É saber que muitas vezes as conquistas são conseguidas com muito esforço e sacrifícios e que o momento sublime da vitória sempre chega. E quando chega, é só correr para o abraço da vida e gritar ao mundo que somos imortais.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Paisagens de Vitória

A exposição "Paisagens de Vitória" do Atelier do Centro de Convivência de Jardim da Penha estará aberta até o dia 10 de dezembro, no Saguão da Prefeitura de Vitória. Os trabalhos foram apresentados utilizando técnicas em grafite e pastel oleoso sobre papel e tinta acrílica sobre tela. O projeto teve a coordenação da artista plástica Zeth Aguiar.

Jorge Lopes, Maria Nasaré Tavares Quintela, Maria Freire, Zeth Aguiar, Eliane Maria Moreira de Almeida, Ana Heléa Baião, Zuleica Passos Gomes, Aidini Graciosa Sachetti Demoner e Célia Maria Sanchotene na inauguração da exposição "Paisagens de Vitória", no dia 1º de dezembro de 2010.

Estes são alguns dos trabalhos expostos:

"Luzes da Cidade" de Ana Heléa Baião (foto: Zuleica P. Gomes)


"Igreja de Todos os Santos" de Célia Maria Sanchotene (foto: Fernando Sanchotene)



Paisagens de Vitória

"Pata Choca na Pedra da Cebola" de Zuleica Passos Gomes (foto: Zuleica P. Gomes)

"Paisagem noturna da Terceira Ponte" de Maria Nasaré Tavares Quintela (foto: Zuleica P. Gomes)


"Cocos nas areias de Camburi" de Ana Heléa Baião (foto: Zuleica P. Gomes)


"Basílica de Santo Antonio" de Aidini Graciosa Schaquetti Demoner (foto:Zuleica P. Gomes)


"Jardins na Praça do Papa" de Eliane Maria Moreira de Almeida (foto: Zuleica P. Gomes)


















sábado, 13 de novembro de 2010

Colar de Pérolas


“Com as lágrimas da minha tristeza eu enfiarei um colar de pérolas

para o teu colo, minha mãe. As estrelas forjaram argolões de luz

para enfeitar os teus pés, mas a minha há de ficar sobre o teu seio.

Riqueza e fama vêem de ti e a ti compete dá-las ou recusá-las.

Mas esta minha tristeza é toda absolutamente minha e,

quando eu a levo, em oferenda a ti,

tu me retribues com a tua graça”.

Ao procurar um nome para este blog, fui inspirada pelo texto do poeta indiano Rabindranath Tagore (1861-1941), não só por sua beleza e por sua sensibilidade, no uso de suas palavras, mas pelas imagens que me vieram à mente quando o li.

Já há algum tempo queria escrever sobre pessoas e acontecimentos que marcaram a minha caminhada e que, de uma maneira ou de outra, contribuíram para ser quem sou. Assim, pensei em registrar, aos poucos, as experiências vividas, como forma de fazê-las compartilhar com todos aqueles que visitam este espaço.

Uma a uma as recordações foram brotando e, na minha imaginação, foram formando um colar de pedras preciosas, mais precisamente de pérolas, as minhas preferidas.

A maioria das jóias é feita usando-se metais e pedras preciosas, como o ouro, a prata e o diamante, dádivas brutas da mãe natureza, que precisam ser lapidadas, a partir da criação humana. Já as pérolas são jóias que, para mim, lembram o interior de um ser, as coisas do coração. Sempre me fascinaram, pois são confeccionadas a partir de uma matéria-prima diferente, encontrada dentro de uma criatura viva, a ostra.

Para entender melhor a analogia que faço, ressalto que as pérolas são o resultado de um processo biológico. É a maneira que a ostra encontra para se proteger de substâncias estranhas. E é curiosa a forma como a ostra se defende. Quando um parasita invade seu corpo, ela libera uma substância chamada madrepérola, que se cristaliza sobre esse elemento estranho, impedindo-o de se reproduzir. Após um período que dura, em média, três anos, esse material se solidifica, formando uma pérola. Sua forma depende do formato do invasor e sua cor varia de acordo com a saúde da ostra.

As ostras não são os únicos moluscos que produzem pérolas. Raramente mexilhões e amêijoas (espécies de mariscos) também podem gerá-las. A maioria das pérolas, no entanto, é produzida pelas ostras, tanto em ambientes de água doce quanto de água salgada.

Existem as pérolas naturais e as cultivadas. As naturais, por definição, são encontradas, por mergulhadores ao acaso, sem qualquer interferência humana em sua formação. São confeccionadas estritamente pela natureza. São muito raras e o trabalho de prospecção é tão difícil que, desde 1916, elas não são mais procuradas. Por isso alcançam altíssimo valor no mercado.

Para se ter uma idéia, há registros de que, no apogeu do império romano, quando a febre do uso de pérolas estava no auge, o general romano Vitellius financiou um exército militar vendendo apenas um dos brincos de sua mãe.

Atualmente, as pérolas estão mais acessíveis à comercialização. Quase todas são cultivadas. Em relação à sua aparência, em nada diferem das naturais, no que tange à beleza, textura e durabilidade. Porém, há a intervenção humana de injetar no interior das ostras parasitas invasores que deflagram o processo. Somente um especialista pode diferenciar uma pérola natural de uma cultivada, atestando, assim, o seu valor comercial.

Como a ostra que se fecha e solidifica o intruso, levando certo tempo para acontecer o aparecimento da pérola, também vivenciamos nossos processos internos que nos levam ao autoconhecimento. Nossos sonhos reais e nossas falsas expectativas são testadas por nossas experiências e confrontadas com a realidade para se solidificarem ou não na formação de nossa identidade. Conduzidos por nossa intuição, vamos dando forma aos nossos ideários por meio de muito trabalho e dedicação.

Sempre que nos conscientizamos de nossos sentimentos verdadeiros ou conseguimos nos unir com uma parte importante de nós mesmos, o futuro se afigura, diante de nós,com possibilidades infinitas. Porém é necessário que disponhamos de tempo, que façamos escolhas cuidadosas e que enfrentemos trabalho pesado para que as possibilidades se concretizem.

Assim como a pérola legítima - natural ou cultivada - é o resultado de uma fantástica criação da natureza, o ser humano também passa por lapidação até chegar à sua maturidade emocional e afetiva e alcançar a sabedoria. Tal qual ostras, que vão construindo a sua obra-prima, minhas recordações vão brotando em meu coração e vão solidificando minha existência, possibilitando que eu repense e avalie minhas atitudes e os acontecimentos nos quais me envolvi. Dessa forma, vou enfiando as contas, prazerosamente, uma a uma, em um resistente fio, formando o colar de minha vida que, com alegria e oferenda, coloco no colo daqueles que me lêem.

domingo, 7 de novembro de 2010

Um drama musical em minha vida

Os amantes da boa música sabem que há gêneros imortais. Não morrem, simplesmente se transformam, para continuar mais atuais do que nunca, como é o caso da ópera. Em plena era do raggie, do hippie hop, do samba raggie, a ópera se transmuta, para provar que tudo o que é bom fica eternizado no imaginário daqueles que sabem a diferença entre música de consumo e melodias que transcendem a dimensão quotidiana do ser humano, para simplesmente ser.

Quando todos pensavam que a ópera era uma mera peça de museu, guardada nas reminiscências dos mais velhos, ela rejuvenesce, a partir de meados do século passado. Os mais eruditos contemporâneos enaltecem os principais compositores de ópera, dentre outros, John Adams, Tobias Picker, Jake Heggie, André Previn, Mark Adamo e Kaija Saariaho, que mantêm a produção operística continua, intensa, embora poucas delas consigam se firmar no repertório das casas de Ópera.

Mas quem é mais velho sabe de suas origens, como também empregar todo o seu poder da imaginação e de um entendimento da linguagem simbólica, que está por trás de um drama encenado através da música, para chegar a seus reais significados. As principais óperas conhecidas que adotam elementos típicos do teatro, tais como a cenografia, vestuário e interpretação, merecem a presença de uma orquestra sinfônica completa para lhes dar amparo.

E, para entendê-las é preciso, mais do que tudo, sensibilidade, senso de imaginação, desprendimento da realidade vivencial que massacra por seu quotidiano de rotinas e mesmices. Foi o que aprendi com meu tio Mario, um dos irmãos mais velhos de minha mãe.

Ele possuía uma bem organizada coleção de óperas em discos de vinil de 78 rotações guardados zelosamente em um armário de cedro que ocupava lugar de destaque na sala, como se ele quisesse passar o recado, a quem o visitava, de que móveis e objetos de decoração são menos significativos do que as ferramentas para se chegar à alma humana.

Meu tio Mário guardava, ao lado do armário, principal e oponente de sua sala de visitas, a eletrola, equipada com potentes amplificadores, para que ele pudesse, em seus momentos de lazer, sentado em sua poltrona predileta, se deliciar ao som de Rossini, Verdi, Ponchielli, Wagner, Bizet, Mozart, Vila Lobos e tantos outros.

E ele ficava, ali, absorto, por horas e horas, de olhos fechados, imaginando as histórias vividas pelos personagens de La Traviata, Carmen, Aída, Tristão e Izolda, A Flauta Mágica, O Barbeiro de Sevilha, La Gioconda, O Guarani, só para citar algumas de sua coleção.

Por muitas vezes, cheguei a imaginar seus momentos de divagação associados à memória que ele guardava de seu irmão Augusto, falecido aos 22 anos, no Rio de Janeiro, quando estudava na Academia Militar. Minha mãe contava que Augusto era barítono e sonhava um dia ser cantor de ópera. Sonho interrompido pelo estampido de um tiro... ( Bem, mas essa é outra história). Mas o certo é que ninguém conseguia saber por onde sua alma viajava, quando abria as portas de uma intensa e bem vivida experiência no interior de si mesmo.

O que todos nós, seus familiares presenciavam era, sim, seus momentos de êxtase. Ninguém se atrevia a chamar-lhe a atenção ou mesmo ousar a fazer qualquer ruído, enquanto se entregava aos ditames das músicas que lhe falavam direto ao coração. O melhor era respeitar o seu deleite.

Eu, quando criança ou adolescente, pouco entendia o significado daquelas letras, em sua maioria cantadas em italiano. Apenas quedava-me, em silêncio, deixando-me, também, impregnar pelas melodias. Elas falavam diretamente à alma, calavam bocas e espargiam sentimentos que iam, aos poucos, preenchendo todos os espaços da casa. Em minha singeleza infantil ou de adolescência, aprendi a educar o meu ouvido para o que não precisava de razões, mas sim sentimentos de empatia. Antes de educar a minha mente, aprendi a aquietar a minha alma, simplesmente esvaziando-me de tudo para me deixar impregnar pelos sons que saiam da casa de meu tio Mário.

Ele herdara essa sensibilidade e bom gosto pela música de seus pais. Minha mãe me contava que quando era criança, seus pais, irmãos e amigos costumavam se reunir, à noite, em casa, para tocar piano e cantar. Faziam os chamados saraus.Tais eventos musicais eram um hábito cultuado por famílias burguesas do início do século XX, que ainda não possuíam a televisão e seus sistemas alienantes, para viverem tão somente das manifestações culturais e artísticas que transcendiam o tempo e o espaço. Sem consumo, sem imediatismo, sem conteúdos levados a não pensar ou não questionar o sistema que molda o status quo vigente.

Assim, a ópera possuía um outro significado no processo de formação do ser humano, desde o seu surgimento, no século XVII, quando passou a ser apreciada, na Europa, principalmente pela burguesia e aristocracia. Amante dessa expressão artística, sempre achei que meu tio Mário era descendente direto dessas castas aristocráticas, dado seu ar e o seu olhar refinados, pois, em seu contato com as pessoas era extremamente atencioso, amoroso e educado. Um verdadeiro gentleman.

E era dessa forma que ele dava sua contribuição à minha formação. Sua erudição o levou a tornar-se uma pessoa sensível aos que se encontravam a sua volta e, por sua perspicácia, sempre sabia dar o conselho certo, a palavra apropriada, o afeto indispensável em qualquer momento em que eu precisasse de sua presença. Nunca o vi levantar a voz para quem quer que fosse mantendo sempre o seu autocontrole e o equilíbrio em situações de confronto. Impunha-se por sua altivez e coerência.

Não por acaso minha mãe era muito apegada a ele. Considerava-o um segundo pai. Quando eu nasci, meus pais convidaram-no, juntamente com sua esposa Aracy para serem meus padrinhos de batismo. E ele cumpria muito bem com seus votos. Todo o mês além de mostrar o boletim para meu pai, tinha de apresentar-lo a ele também para que aprovasse minhas notas escolares. (Ainda bem que eu não os decepcionava!).

Pena que esses velhos hábitos estão morrendo. As cidades coisificaram as relações. Famílias enormes são cada vez mais raras. O que dizer, então, da presença de padrinhos na vida de crianças e adolescentes? Talvez, se os padrinhos continuassem a ter o seu papel na formação dos mais novos, quem sabe teríamos adultos mais completos. Quem sabe esses ajudariam mais na educação e formação integral do ser humano, a partir de experiências afetivas mais completas, base para a constituição de indivíduos mais equilibrados e centrados em si mesmos.

Felizmente olho para o meu universo e constato que também tenho uma afilhada, a quem amo e me preocupo com seu futuro. Assim como fez um dia meu tio e padrinho Mário, cuja presença me foi privada, quando faleceu vítima de complicações com diabetes e pela tristeza provocada pelo falecimento de seu filho Milton. Meu consolo é saber que, quando hoje ouço uma ópera, o sinto, falando-me de coração a coração, e tanto ele quanto eu nos encontramos, longe do tempo e do espaço, onde a vida não tem forma, mas, simplesmente, emoção eternizada que guarda puras melodias e nos remete ao que há de mais eterno em nossa existência.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Herói ou mutante?

Este Blog foi criado para incentivar a reflexão sobre como relações familiares influenciam a formação dos indivíduos e, também, como indivíduos se unem para formar uma verdadeira família. As reflexões publicadas baseiam-se em minhas experiências, procurando levar cada leitor a promover as suas próprias análises, ampliando assim a compreensão da relação indivíduo x família.

Ao examinar a minha árvore genealógica constato a existência, em um de seus pilares, de um personagem que faz parte da historiografia brasileira, tanto visto como herói quanto controverso militar, que lutou na chamada Revolução Farroupilha. Refiro-me ao militar Bento Manoel Ribeiro, bisavô de minha avó materna.

Seus principais feitos estão ligados a um embate que envolveu, de um lado, um contingente de gaúchos, liderados por estancieiros e, de outro, as tropas imperiais, durante o decênio 1835-1845. Os rebeldes, pelo longo tempo de “peleja”, passaram a ser também chamados de farrapos, devido à sua precária indumentária, em razão dos desgastes por que passaram e por sua situação financeira progressivamente adversa. Por isso mesmo, o confronto também passou a ser conhecido como Guerra dos Farrapos.

Para o povo gaúcho, esse conflito bélico representa, hoje, a própria materialização de sua identidade, sendo, por isso mesmo, comemorado, anualmente, em cada 20 de setembro, como o dia do gaúcho. Nos anais dessa história farroupilha, inúmeros personagens foram considerados mitos, outros, no entanto, foram simplesmente vistos como figuras controversas, como é o caso de meu tetra avô.

O ser humano sempre deseja orgulhar-se de seus ascendentes, de ostentar, em suas origens, a figura mítica de um herói que passa à história por ser admirado, cortejado e reverenciado por seus feitos. Nesse sentido, a historiografia não deixa de considerar os grandes feitos de Bento Manoel Ribeiro, em toda a sua trajetória militar. Mas também considera, em seus anais, o fato de ele ter trocado de lado duas vezes, nas campanhas onde esteve envolvido, durante a Revolução Farroupilha.

Como sempre acontece, um exame sobre os feitos passados traz reflexos não só ao seu personagem principal, mas, também, envolve, indiretamente, a todos os seus descendentes. Parece que a análise histórica dos fatos pende muito mais para o lado de suas opções pessoais do que, propriamente, reconhece seus feitos em campos de batalha.

Prevalece mais a forma preconceituosa do que a coragem de reconhecer e elevar a quem comandou homens, enfrentou inúmeras vezes a morte de perto, foi um grande estrategista, surpreendeu seus inimigos, venceu-os em seus confrontos diretos, sem muita tecnologia, mas cara a cara, com bravura e destemor.

O ser humano gosta de impor rótulos, muito mais do que elevar figuras humanas. E, certamente, tais efeitos danosos também recaem sobre seus descendentes: “ah! Tu és parente do fulano?” exibindo um sorriso irônico na face. Já os parentes diretos, sob olhares suspeitos, tendem a examinar esses atores a partir de suas reais condições. Desde pequena sempre ouvi as pessoas mais velhas da família enaltecerem os feitos militares deste parente distante, desprezando toda a controvérsia que seu nome evoca.

Quem foi Bento Manoel Ribeiro? A historiografia o retrata como um homem incomum, que possuía um temperamento igualmente incomum. Nasceu em 1783, em Sorocaba, São Paulo, filho do tropeiro Manoel Ribeiro de Almeida. Pelo lado materno descendia do bandeirante Anhangüera e do português João Ramalho e, pela linha paterna, de Pedro Taques.

Com sete anos veio para o Rio Grande do Sul, como piá de uma estância, em Rio Pardo.

Em 1800, aos 18 anos, ingressou nas fileiras do Regimento Dragões do Rio Pardo como soldado raso. Sua carreira militar durou 54 anos, sendo ela encerrada no posto de Marechal do Exército Brasileiro.

Era descrito como um militar estrategista. Possuía um amplo conhecimento sobre os habitantes da chamada “campanha” (meio rural), instalados na Província do Rio Grande. Tinha muito prestígio no meio onde circulava e sua liderança levantava os ânimos e dava coragem aos combatentes. Quando a legalidade estava caída, ele, com sua presença, dava-lhe vida e, quando a causa da República precisava alento, ele lhe dava.

Prestou relevantes serviços militares à Integridade e soberania do Brasil, tanto como colônia quanto independente, desde um simples soldado até chegar a marechal do Exército Imperial. Lutou nas guerras do Sul, de 1801, 1811-12, 1816 e 1821, 1825-28 e 1851-52, onde se firmou entre as maiores espadas de seu tempo. Foi militar de raros méritos táticos, era profundo conhecedor do território onde combatia e detentor de grande capacidade de nele orientar-se.

Conseguiu, graças a seu carisma, liderar ações em combate e bem combinar Infantaria e Cavalaria, além de possuir conhecimento apreciável sobre a psicologia de seus homens e de seus adversários. Lutou pelo Rio Grande sem perder de vista a integridade do Brasil e também lutou pelo Brasil, enaltecendo o Rio Grande do Sul na conformação da nação brasileira.

Durante o tempo em que durou a Revolução Farroupilha, em função de seu temperamento singular, em defesa de seus interesses e por seguir as suas próprias regras, ao invés das dos governos que serviu, adotou posições até hoje controvertidas e aparentemente inexplicáveis.

Ao combater ora ao lado dos farrapos, ora ao lado dos imperiais, sempre desequilibrou, acentuadamente, o prato da balança, em favor da causa que defendia. Inicialmente como farrapo, depois como imperial, novamente como farrapo e, finalmente, depois de mais de dois anos de neutralidade, lutou pelo Império até o final da Revolução, "como vaqueano-mor de Caixas". Deu grande contribuição à conquista e à preservação dos objetivos do Brasil de unidade, integridade e soberania.

Morreu com 72 anos de idade, rico, mas sem livrar-se da fama controvertida. Sobre ele escreveu o veterano farrapo Ten. Caldeira: “foi indiscutivelmente a maior espada do Rio Grande do seu tempo e o maior especialista na Guerra de Coxilhas ou na Arte Militar dos Pampas”.

Hoje, como sua descendente, não fixo o meu olhar tão somente na controvérsia que a história deixa transparecer, mas exalto seu espírito guerreiro, que lutou com bravura e fidelidade em cada lado escolhido. O que importa é como se dedicou a perseguir aquilo que achava certo. Ainda mais dentro de um conflito que durou longos dez anos e que deixou exauridas as tropas, maltrapilhas, corroídas pelo sofrimento e, como qualquer outra guerra, chegou a resultados muito distantes dos ideais traçados ao seu início.

Ao cabo de tanto desgaste, já não há mais ligação entre os motivos que deflagraram o conflito e as razões para chegar ao fim de um verdadeiro flagelo, como neste caso, onde pereceram cerca de 3.500 heróis, em sua maioria aqueles que se insurgiram contra a cobrança desmedida de impostos, o desprezo pela autonomia regional e o desdém pela identidade de um povo. Guerra é sempre sinônimo de dor e sofrimento, nunca de lucidez e racionalismo. Por isso quem nunca a viveu não pode julgá-la segundo valores trazidos dos tempos de paz, de ordem e civilidade.

Há, em cada um de nós, a figura de um mutante, assim como a de um herói. O olhar sobre a história é sempre subjetivo e depende de quem se debruça sobre o seu objeto. .Fica em nós, seus descentes, a certeza de que o ser humano pode mudar muitas vezes o seu caminho sem perder, no entanto, sua integridade e seus valores existenciais.

Bento Manoel Ribeiro fez as suas opções em pleno campo de batalha. Hoje, sem comprometer suas vidas, suas fileiras, troca-se descompromissadamente de partidos e de ideologias sem que isso assuma quaisquer conotações controversas.




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domingo, 5 de setembro de 2010

Mosquito-pito

Quem sou não pode ser dissociado de quem fui. Tudo pertence a uma evolução. O passado deixa suas marcas através de seus ícones, que sintetizam comportamentos, expressões, sentimentos. Uma peça de teatro, uma tela de um artista visionário, uma música ou um filme despertam em nós recordações, avivam experiências, enaltecem marcas deixadas através do tempo. Mesmo passadas algumas décadas, o filme Mon Uncle (Meu Tio - 1958) ainda é motivo de discussões entre os amantes da arte cinematográfica. Para mim é uma fonte de emoções vividas naquela época.

Quem assistiu essa comédia de humor mordaz e inteligente de Jacques Tati sabe que ela retrata muito bem, entre outros aspectos, as relações familiares e o afeto entre o personagem principal, sr. Hulot e seu sobrinho Gérard. Os dois vivem uma série de peripécias que ridicularizam as relações em tempos derivados da tecnologia emergente. O tio conquista o sobrinho mostrando as coisas simples da vida.

Assim como na ficção, também na vida real a relação entre tios e sobrinhos deixa influências e sentimentos transmitidos que vão dar a cada nova geração as marcas que perduram em suas convivências individuais e sociais. Eu tenho as minhas recordações de infância e permito-me associá-las a esse filme visto quando criança. Foi assim que, na construção de meus afetos, tive a influência benfazeja de meu tio Zeca e seu jeito de encarar a vida através de seu lado jocoso.

Mosquito pito do boni bonito” Era assim que meu tio cantava, chamando a minha irmã do meio. Dizia ele que era porque ela não parava quieta, estava sempre se movimentando, parecia um “mosquito elétrico”. Não sei de onde ele tirava esses trocadilhos, só sei que nos divertíamos ao ouvi-lo, por seu jeito simpático e afável de tratar suas sobrinhas.

Irmão mais velho de meu pai, era militar, mas certamente não tinha a sisudez dos homens das armas. Para nós, crianças era simplesmente o tio Zeca.

O que mais me chamava a atenção em meu tio era a sua perspicácia. Fazia piadas com as situações mais simples que aconteciam. E nos fazia morrer de rir. Ele cantava e fazia letras de música, retratando, de forma engraçada, as situações do momento. Foi esse mesmo jeito desprendido que o levou a também chamar minha irmã de “Pessoa”.

É que, por volta dos seis anos de idade, ela escrevera uma carta a nossos tios e primos, que moravam em outra cidade, relatando uma situação vivenciada. Na carta, usara a palavra “pessoa” uma infinidade de vezes. Foi o que bastou para ele começar a chamá-la por esse novo nome. Mas ela não se incomodava com isso. A impressão que eu tinha era de que ela até gostava de estar em evidência, o que, de certa forma, me dava uma pontinha de inveja. Talvez isso, mais tarde, tenha nos ajudado a cuidar da redação, não repetindo as palavras, procurando sempre expandir o vocabulário. Foi despertando em nós um sentido mais respeitoso para o uso da língua portuguesa.

Através desse lado despretencioso também aprendemos a ser afetivamente consideradas por esse meu tio que ousava brincar com as palavras. Construímos uma relação inquebrantável, parte de uma herança familiar que, antes de tudo, envolve a definição de sentimentos (de segurança ou de insegurança, de dúvida ou de confiança em si, de indignidade ou de orgulho, de modéstia ou de arrogância, de privação ou de domínio). Ele contribuiu para dosar essa dicotomia.

Quando nos visitava, costumava passear, à tarde, na Rua da Praia, a Rua dos Andradas, a mais movimentada e famosa da capital gaúcha. Ao sair de casa ele anunciava: “Eu vou ao povo!”. E lá ia ele, todo sorridente, pegar o bonde. À noite, antes de dormir, costumava ir até o quarto para dar-nos a bênção. Ficava parado na soleira da porta e fazia o gesto característico, com o braço levantado, apontando os dedos anular e indicador para cima. Minhas irmãs e eu cobríamos a cabeça com o lençol fingindo que já estávamos dormindo. E ríamos baixinho, sentindo-nos seguras. Assim ficava o vestígio da presença divina no silêncio da noite.

Meu tio morava com sua família numa pequena cidade, localizada na divisa entre os estados de Santa Catarina e Paraná. E, já na adolescência, quando chegavam as férias, eu mal podia esperar para visitá-los e aproveitar a oportunidade para estreitar ainda mais os laços familiares. Lá, freqüentava, com minha prima, os animados bailes promovidos pelo clube da cidade, e o cinema cujo gerente era o irmão de minha tia. Assim podíamos assistir a todos os filmes de sucesso que eram exibidos. E mais de uma vez. Acho que foi daí que comecei a apreciar com mais atenção a sétima arte.

Um pouco menos que irmãos, mas muito mais que amigos: os primos. E com eles, os tios, os avós. Todos juntos formam nossa "grande" família”, na qual nos encontramos inseridos e com a qual compartilhamos histórias comuns, formando as tradições e a cultura familiar especial. E, neste contexto, tio Zeca representa, assim como no filme Mon Uncle, tudo o que se pode colocar em evidência nas relações entre tios e sobrinhos, a partir da construção de uma vida simples e afetiva compartilhada.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Eu, pintora?







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Por que você não pinta?, perguntou-me, certa vez, uma amiga.
"Você sabe combinar as cores ao se vestir."

Vacilei, com suas palavras, mas fiquei intrigada. Nunca havia sequer imaginado que poderia me atrever a dar uns rabiscos no papel. Até que um dia me animei. Inscrevi-me em um curso de pintura em tela e pensei: “Vamos em frente! Vamos ver no que vai dar”.

Ao começar o curso, constatei que a pintura é um processo aberto. Como escrever. Você olha a tela em branco, assim como encara a folha de papel ou a tela aberta do computador. Ela está ali. Na tua frente, exortando um olhar diferente.

Uma infinidade de cores em tintas e alguns pinceis acompanham a tela em branco. Tudo é surpresa. E você não sabe o que vai acontecer. São infinitas possibilidades. Só falta aquele ato de coragem de dar os primeiros traços. E, quando ele sai, tudo é criação.

A criação é um processo de autoconhecimento. Você vai descerrando os véus e descobrindo o mundo a sua volta. É o aprendizado de educar o olhar. Com as primeiras impressões, sobre a tela, passei a me surpreender observando mais atentamente o céu, as suas nuances, os tons de azul, o formato das nuvens, e, também, os inúmeros tons de verde, luz e sombra das árvores por onde passo... Observo as cores na plumagem dos pássaros. De repente, descubro, dentro de mim, sentimentos e sensações que dantes estavam bem escondidos, intocáveis.

Quantos já passaram por essa experiência? Penso nos pintores com a boca e com os pés. Sua criatividade é fruto da superação de todos os obstáculos, até chegar a produzir uma obra reconhecida, completa, concreta, entre o imaginar e o realizar. Como dizia o grande Picasso: “A inspiração existe, porém temos que encontrá-la trabalhando”.

Essa é uma regra geral: quantos tiveram que superar os mais variados desafios para tornarem-se consagrados, admirados e reconhecidos. Muitas deles, em vida, não chegaram a conhecer a fama, como foi o caso, entre outros, de Van Gogh (1853-1890), incompreendido em seu tempo, desajustado, maldito por seus contemporâneos. Só depois de morto, foi aclamado para a posteridade.

Também Cézanne (1939-1906) que, na escola, tirava notas altas, em todas as matérias, menos em desenho e, quando tentou entrar na escola de Belas Artes, por duas vezes, foi reprovado. Os críticos da época zombavam de sua arte.

Paul Gauguin (1848-1903) foi outro que, inicialmente, pintava por hobby e, ao perder seu bom emprego, resolveu ganhar dinheiro com sua pintura. Não conseguiu. Morreu pobre e doente.

Em todos eles, há a vontade de superação de seus próprios limites, há o enfrentamento de todas as vicissitudes da vida para realização de seus sonhos. E, no meio do caminho, quantos deles chegaram a pensar em desistir, abandonar todos os seus sonhos, fugir de suas obras, deixar suas tintas e pinceis repousando, com medo de serem reprovados por seus públicos ou críticos? Quanto lhes custou perseverar, quebrar barreiras, vencer a timidez, o medo, a reprovação? - “O que os outros vão dizer?”- Mas seguiram em frente, com coragem...

E o que dizer daqueles que elevaram seus egos para além de suas críticas, como Salvador Dali (1904/1989), que dizia que as duas coisas mais felizes que podem acontecer a um pintor é ser espanhol (como ele) e se chamar Dalí”...Ou Picasso ( 1881/1973) que amou as mulheres com a mesma intensidade com que produziu a sua obra...

Quanto a mim, ainda não sei de minhas pretensões. Basta-me ir descobrindo, aos poucos, o caminho por onde as tintas me levam... e ter consciência de que o ato de pintar abre uma nova visão da vida através de um olhar renovado, para entender as cores que Deus colocou em seu quadro, tão concreto, tão abstrato de sua Obra. Sigo pelos caminhos do aprendizado, ainda engatinhando, despreocupada em ser uma pintora consagrada, mas disposta a descobrir novos véus.

Afinal, isso vale para todos os que recebem elogios. Não para enaltecer seus egos, mas, quem sabe, para chamar atenção sobre suas inquietudes. Como um verdadeiro empurrão, para despertar coragens, abrir universos e levar a novos tons, bastando apenas redirecionar antigos olhares para dar vida a telas brancas de pintura, folhas em branco ou telas de computador.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Receitas da vovó

Vive dentro de mim a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola. Quitute bem feito .
Panela de barro.Taipa de linha.
Cozinha antiga, toda pretinha
.”

Quando leio os poemas de Cora Coralina lembro-me de minha avó Raquel. Ela era exímia cozinheira. Quituteira de mão cheia. Fazia doces e pães maravilhosos. Achei nas coisas de minha mãe, amarelado pelo tempo, um caderno de receitas escritas por minha avó, com uma caligrafia fina e caprichada: bolinhos delicados, bolo de nozes, pudim de laranja, queijadinhas, merengues em calda, bacalhau com leite, empadinhas, entre outras delícias. São receitas provadas e aprovadas por aqueles que tiveram o privilégio de saboreá-las. Guardei como uma relíquia. Ainda não fiz nenhuma das receitas. Não me senti à altura. Mas o caderno está lá, em lugar de destaque. Um dia me encorajo...

Minha avó materna morreu aos 89 anos. Era uma mulher alta, gorda e tinha um sorriso aberto, muito bonito. Pele bem clara, cabelos lisos e expressivos olhos castanhos. Casou muito jovem, com 17 anos; teve nove filhos, trinta netos e já perdi a conta de quantos bisnetos e tataranetos. Ficou viúva aos quarenta e poucos anos e, sua vida, até então sem grandes preocupações financeiras, sofreu uma reviravolta. A responsabilidade da família ficou por conta do seu filho Mário que assumiu a educação dos irmãos mais novos e a direção da casa. Para manter e ajudar o filho nas despesas, minha avó fazia doces, pães e bolos para vender. O sucesso era certo e a clientela só aumentava. Aos poucos, meu tio foi-se fortalecendo financeiramente e vó Raquel passou a exibir seus dons de quituteira somente para os mais chegados.

O ponto alto era a comemoração de seu aniversário, dia 24 de junho, dia de São João. À noite, a família toda – filhos, netos e demais parentes - reunia-se para reverenciar a data. Uma enorme fogueira era montada e acesa na rua, em frente à casa. Deliciávamo-nos com os quitutes típicos - a maioria preparados por ela - e com as brincadeiras junto à fogueira. Meus primos mais velhos vestiam-se com trajes caipiras, colocavam uma barriga postiça, pintavam bigodes e cavanhaques e faziam um monte de palhaçadas para a criançada.

Uma vez ao ano, junto com minha tia, vó Raquel passava uma temporada no Rio de Janeiro, visitando os dois filhos que lá moravam. Gostavam de viajar de navio. Quando chegavam, íamos buscá-las no cais do Porto e era aquela festa com os presentes que traziam. Uma vez, ela trouxe para mim e para a minha irmã duas bonecas de louça. As bonecas, últimas novidades em matéria de brinquedos, nos encantaram, com seus cabelos cacheados, vestidos de organdi, sapatos e bolsas. De tanto pentearmos os cabelos das bonecas, logo, coitadas, ficaram carecas.

Já mais idosa, não se dedicava mais à cozinha. Mas quando a visitávamos, íamos direto para o seu quarto, onde escondia, especialmente para nós, balas e biscoitos delicadamente acomodados em latas coloridas, os quais saboreávamos jogando conversa fora.

Minha avó nunca teve doença grave. Tinha boa saúde. Nos últimos anos é que as pernas já não tinham a mesma energia, andava com dificuldade. Da minha festa de 15 anos ela não pode participar e nem preparar os quitutes. Mas a festa contou indiretamente com sua presença, pois minha mãe se encarregou de preparar com todo o esmero as suas receitas de doces e salgados. No dia seguinte, meu pai foi buscá-la de carro para almoçar conosco. Minha mãe fez com que eu vestisse o vestido da festa, chamou o fotógrafo e minha vó e eu tiramos uma foto para lembrança.

Hoje em dia quando estou na cozinha, preparando o alimento para minha família, reinventando sabores e cores, sentindo o cheiro se espalhar pela casa, penso em minha avó quituteira. Ainda sinto em minha boca o gosto dos papos de anjo, dos quindins, das rapadurinhas de leite, dos pães quentinhos, dos bem-casados, misturados com o seu carinho...

Um pouco de melancolia teima em ficar no ar, quando penso que esses prazeres se perderam no tempo com o corre-corre da vida moderna, que leva as pessoas aos supermercados, aos fast foods, aos self services. No entanto ainda prefiro manter os hábitos culinários que minha avó me inspirou, ao tempo em que preparar uma saborosa receita pertence ao mesmo ritual de quem faz poesia, sem pressa, sem se deixar dominar pelas horas, usando os mesmos ingredientes para agradar não só estômagos, mas para encher a alma de gestos completos de mulheres que experimentam a vida em todos os seus sabores, assim como fazia a minha avó.

domingo, 8 de agosto de 2010

De fantasmas e de fantasias

Era uma noite quente de verão. Todos dormiam em casa procurando usufruir ao máximo a leve brisa que entrava pelas janelas. Dormíamos as três meninas no mesmo quarto, cada uma em sua cama, bem confortáveis e seguras. De repente ouviu-se um grito na madrugada: “Tem uma mulher mexendo no guarda-roupa da vó”.

A família inteira acordou assustada, pois a avó tinha viajado e, logicamente, não estava no quarto. Meu pai levantou-se apreensivo, calçou as chinelas, e correu para o quarto em questão. Não encontrando ninguém, dali desceu as escadas e, acendendo as luzes, fez a vistoria na casa inteira. Olhou a rua, tudo tranqüilo. Nada que indicasse arrombamento ou algo parecido. A vizinhança estava toda em silêncio. Nenhum cachorro latia.

Minha mãe, ainda sonolenta, tentava consolar as três filhas que, de olhos arregalados, temiam voltar para suas camas. “Não há ninguém aqui, minha filha”, dizia meu pai com seu sorriso amoroso. “Eu vi, sim, pai”, afirmava minha irmã mais nova, com a experiência de seus três anos de idade. Ela havia levantado para ir ao banheiro e, ao passar em frente à porta do quarto da avó, enxergou a tal mulher, a qual descrevia com detalhes. As crianças menores possuem uma sensibilidade espiritual muito grande e existem relatos que comprovam esta afirmação. Mas meus pais não pensavam nisso naquele momento. Queriam acalmar as filhas e voltar a dormir, uma vez que, vistoriada a casa, nada havia sido encontrado. Mas a rebordosa já estava armada.

Manifestando nossa sensibilidade infantil, não nos conformávamos com as explicações de ordem material dada por nossos pais e ficamos intrigadas, abrindo a possibilidade de que algo mais realmente poderia existir ali. Ainda permanecemos um bom tempo exigindo a atenção dos pais, até que, finalmente, o cansaço foi mais forte e voltamos a dormir. No outro dia, tudo voltou ao normal.

Anos depois, me deparo com relatos semelhantes de meus filhos que afirmavam, com esta mesma idade, ver vultos subindo as escadas de nossa casa ou perto de suas camas.

Encarei esses fatos com naturalidade. Segundo psicólogos as crianças com menos de sete anos não vêem nada de anormal nessas experiências e eu também.

Alguns pais costumam intimidar ou inibir esses relatos. Em conseqüência, muitos problemas interiores podem surgir. É assim que a criança passa a acreditar que nem tudo é possível, colocando um freio em todas as suas possibilidades.

Já outros pais, com mentes mais abertas, não descartam esses fenômenos e, portanto, não chegam a influenciar negativamente seus filhos em relação às questões tratadas como imaginárias.

Para essas crianças tudo é possível. Tudo faz parte de sua realidade. Em tenra idade, ainda não houve tempo de serem influenciadas pelos adultos, não foram condicionadas sobre o que é ou não é real. Foi-lhes permitido serem elas mesmas, estarem abertas a novas experiências. E, em sua caminhada pela vida, com certeza tornam-se, mais tarde, pessoas criativas e prontas para enfrentarem, com confiança e sabedoria, tudo aquilo que se esconde sob os véus do indecifrável ou se encontre em âmbito do seu inconsciente.

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Como dizia minha avó

Sempre que ouço alguém citar algum provérbio, lembro-me das alocuções de minha avó, mãe de meu pai. Ela conservava, em sua lucidez e perspicácia, uma coleção deles e, a cada situação, que ela presenciava, citava um de seus diletos, sempre devidamente apropriado à realidade retratada.

“Quem guarda sempre tem”, “Quem dá o que tem a pedir vem”, “Boi lerdo bebe água turva”, “Quem desdenha quer comprar”, ”O que é de gosto regala a vida.” “O apressado come cru”, “Quem ama o feio, bonito lhe parece”, “A mentira tem pernas curtas”, “Gato escaldado tem medo de água fria”, “A bom entendedor meia palavra basta”, “A noite é boa conselheira”, “Antes só do que mal acompanhado”, “Cada um sabe onde o sapato lhe aperta”, “O que é do homem o bicho não come”, “Quem diz o que quer, ouve o que não quer”, ou “Quem cala, consente” e assim por diante.

Ao fazer essas citações, por certo, sua intenção era fazer-nos pensar na mensagem oculta que queria transmitir. Criada em fazenda, no interior do Rio Grande do Sul, onde a maioria não passava das primeiras letras, dentro de uma cultura oral e machista, aprendeu a utilizar o provérbio como uma forma de persuasão, validando seus argumentos, frutos da combinação de seu imaginário com a realidade da campanha onde viveu. Por certo que sua cultura campeira passou a se contextualizar em ambiente urbano, quando aos vinte e poucos anos, foi viver na capital do estado.

Representando uma nova geração, meus irmãos e eu passamos a incorporar os provérbios em nosso dia a dia, não mais dentro de sua tradição, mas como meio de fazer validar as influências deixadas por ela, matriarca da família, quando precisava persuadir aqueles a quem gostaria de impressionar.

Muitas vezes, surpreendo-me repetindo-os também para os mais novos. Cada vez que os invoco, é como se minha avó estivesse perto de mim. Mal consigo disfarçar um sorriso de cumplicidade.

E isso me faz pensar que sua aparência altiva e talvez até soberba, ocultava uma mulher conhecedora dos questionamentos da alma. Até deixar esta vida, em 1972, aos 86 anos, minha avó conservava a elegância no andar. Nem a idade conseguiu curvá-la. Ela tinha profundos olhos azuis e a pele bem clara, quase sem rugas.

Era ela que também fazia balas de mel, delícias que marcaram a minha infância. Eram transparentes e macias. Mal podíamos esperar que elas ficassem prontas. Meus irmãos e eu ficávamos ansiosos à espera que esfriassem na bandeja para saboreá-las. Lembro-me o dia, que meu irmão mais novo, então com dois anos, entrou na cozinha e colocou a mãozinha no prato com o mel ainda quente. Teve queimadura feia. Por um tempo, nossa avó não fez mais as balas de mel. Sentiu-se culpada pelo acontecido. Somente tempos depois, por muito insistirmos, ela voltou a nos alegrar com as tão apreciadas “balinhas”...

Vó Alayde tinha um rádio no quarto. Todas as noites, após comer o seu mingau de aveia, ela se recolhia aos seus aposentos, deitava-se e ficava escutando as novelas do rádio. Eu sentava-me junto à sua cama e acompanhava com ela as histórias fascinantes de mocinhas e mocinhos das novelas. Uma delas era chamada “Violino Cigano”, que eu adorava. Minha imaginação ia longe com as estórias de amor dos moradores de uma tribo cigana.

Aos poucos, minha vó foi abandonando seus crochês, o hábito de escutar o seu rádio e a prática de fazer balinhas de mel.

Até então, quando eu a ajudava em alguma coisa, dizia-me, sem perder a sagacidade: ”Obrigada, minha filha, o que eu te devo teu namoradinho que te pague!”.

O convívio com minha avó e suas estórias e histórias deixou-me impressões que guardei ao longo de minha vida. Do enredo de “Violino Cigano” guardei o interesse pelas histórias de magia e de mistério, consulta às cartas advinhatórias, danças ciganas e tudo aquilo que representa as tradições ligadas ao inconsciente humano.

Querida vozinha, hoje entendo a sua personalidade calada. Mesmo em seu silêncio, falava através de suas atitudes, seus gestos e seu carinho especial a mim, ficando, para sempre, em minha memória, toda vez que um provérbio é lançado ao ar. “Como dizia minha avó...”

terça-feira, 6 de julho de 2010

Quero um gatinho para me fazer companhia

Nunca gostei muito de gatos. Apreciava mais os cães. Sempre convivi com cães em casa desde criança. Quando meus filhos pequenos quiseram ter um animalzinho de estimação, escolheram a Lucy, uma border colly super inteligente. Depois chegou a Déa, uma pastora alemã e, por último a Shana, outra pastora. Um dia, ao colocar o carro na garagem, eu não a vi sair e ela escapuliu para a rua. Procuramos por todos os cantos durante várias semanas, mas nunca mais a achamos. Deve ter encontrado novos donos.
Por alguns anos decidimos não ter animais em casa, até que, em um domingo de sol, uma amiga presenteou a família com um gatinho amarelo. É que, um dia eu havia dito de brincadeira: “Quero um gatinho para me fazer companhia”. E ela levou a sério. Felizmente. Ele era uma gracinha. Veio em uma cesta forrada com um colchãozinho macio. Até roupinha para dormir ele tinha. Nos conquistou à primeira vista. Até então, minha experiência com os felinos era zero. Consequentemente, Ronron e eu tivemos de ir aos poucos nos conhecendo.
Como já disse, nunca me interessei por gatos. A gente cresce cantando a antiga cantiga de roda “Atirei um pau no gato” e fica influenciada pela agressividade em relação aos animais da família dos felídeos. Que crueldade atirar um pau no gato e lamentar porque ele não morreu... E a dona Chica, coitada, que berrou tanto que o gato deu... miau. Também tem o desenho infantil, onde Tom está sempre perseguindo o rato Jerry que sempre o faz de bobo. Pobre gato, nunca consegue caçar o rato. Além disso, as bruxas das estórias infantis sempre aparecem acompanhadas de um gato preto. Mas em contrapartida, existem as estórias de gatos interessantes e inteligentes como, por exemplo, o Gato de Botas, o Gato Felix, o Garfield. Todas essas histórias me faziam ter certa desconfiança dos gatos e o meu interesse em conhecê-los melhor ficava somente no nível das estórias, fotos e canções.
Agora sei que no antigo Egito os gatos eram venerados e considerados sagrados. Bast, a deusa da fertilidade e da felicidade, considerada benfeitora e protetora do homem era representada na forma de uma mulher com a cabeça de um gato. Em outras civilizações, os gatos também eram venerados, a exemplo da Pérsia antiga, onde havia a crença de que quando o gato era maltratado, corria-se o risco de estar maltratando um espírito amigo e, ao fazer isso, o homem estaria atingindo a si mesmo.
Isso explica para mim porque os gatos são indecifráveis. Eles são autênticos, não precisam bajular ninguém. Eles se bastam. São independentes. Asseados.
Silenciosos até no andar. Elegantes. Misteriosos, porque em torno deles giram muitas histórias. Ronron não foge a regra, sabe o que quer e sabe impor sua vontade. Quando quer aconchego vem de mansinho, se aconchega e vai ficando, ronronando baixinho. Sabe perfeitamente respeitar o espaço daqueles com quem convive, mas exige também a reciprocidade. Realmente, é um grande companheiro. Por isso não me arrependo de ter um dia falado “quero um gatinho para me fazer companhia”.


quinta-feira, 10 de junho de 2010

Uma tarde em Vitória


Ilha do Frade


Praia do Canto vista da Ilha do Frade





Entardecer em Vitória

Ensaio de minha autoria. Passeio na Ilha do Frade, Vitória, Espírito Santo, em uma tarde de junho.

sábado, 17 de abril de 2010

Verões na praia

Todos os anos, no mês de fevereiro, quando tirava férias, meu pai alugava uma casa na praia. A mania de todo portoalegrense é ir para a praia no verão. Primeiro, íamos para Pinhal, uma pequena praia no litoral sul do estado. Era uma festa! Lembro que uma vez fomos para uma casa que ficava rodeada de cômoros de areia. Era areia para todos os lados. Quando ventava, a areia entrava na casa. Quando íamos deitar, as camas estavam cheias de areia e tínhamos de sacudir os lençóis e estendê-los novamente. Quando chovia, lagoas se formavam entre as dunas. Divertíamo-nos, correndo nas pequenas lagoas que eram bem rasas, jogando água para todo o lado. Lembro de uma vez, que nessas brincadeiras, correndo atrás de nós, tia Célia foi sugada pela areia. De repente, foi afundando e já estava enterrada até a cintura, quando meu pai chegou. Ele conseguiu alcançar para ela um pedaço de pau – não sei onde ele arrumou naquela hora – e puxou-a para um lugar seco. Depois desse susto, não brincamos mais nas dunas em tempos de chuva. Não sei se foi por causa disso, mas meus pais não quiseram mais ir para Pinhal.
Então, começaram a alugar uma casa em Arroio do Sal, simpática praia no litoral norte. Durante uns três anos alugavam a casa de dona Chiquinha. Era uma casa bem espaçosa, com varanda em todos os lados, onde pendurávamos as redes. Porém, não havia um banheiro completo na casa, pois não havia água encanada naquela praia. Era tudo bem rudimentar. Era preciso tocar uma bomba para encher a caixa d’água que abastecia somente a cozinha, e o banheiro. No banheiro dentro de casa, só havia uma pia e um chuveiro frio. As “necessidades” eram feitas em uma casinha de madeira com um buraco no chão, situada no fundo do terreno. Chamávamos o cubículo de “casinha misteriosa”. Meu pai gostou muito desta praia e acabou comprando um terreno lá. Veraneamos também uns dois anos em Santa Terezinha, perto de Capão da Canoa. Lá já havia um pouco mais de conforto. Depois, voltamos por mais uns dois anos a passar as férias em Arroio do Sal em uma casa alugada em outra rua. Esta já continha um banheiro completo. Mas as paredes da casa eram todas cheias de furos na madeira. Meu pai alugou a casa sem saber que estava em péssimo estado, acho que ele alugou por anuncio do jornal. Só percebeu o estado da casa quando chegamos lá. Aí ele já havia pago o aluguel e resolveu ficar lá com a família para aproveitar o tempo bom que fazia. Só eu que não pude aproveitar os banhos de mar daquele verão ensolarado. Naquele ano, fiquei cheia de furúnculos nas pernas. Quase não aproveitei o veraneio, pois tinha de ficar em casa por não poder caminhar devido às dores e para não infeccionar com a areia e a água do mar. Quem me medicava era um vizinho, o dr. Peixoto, que era um veterinário. Ele me receitou antibióticos e pomadas que me aliviavam as dores. Todos riam e faziam chacotas por eu estar sendo tratada por um veterinário. E eu levava tudo na brincadeira. Enfim, fui bem tratada e melhorei. Como sempre gostei de ler, passei o verão lendo, fazendo palavras cruzadas e jogando cartas.
Já na adolescência veraneamos em Torres, uma das mais belas praias do Brasil. O marido de minha prima havia construído uma casa na Praia da Cal e insistiu muito para que meus pais fossem passar o verão na mesma praia. Meu pai alugou então a casa dona Amélia Maristani, uma pintora, amiga da família. Os veraneios em Torres foram maravilhosos. Formamos uma turma boa. Curtíamos as belezas da Praia da Cal, da Praia Grande, da Guarita, do rio Mambituba, os passeios até o alto do Morro do Farol ou o Morro das Furnas, as fortes ondas batendo furiosas nos rochedos, espalhando espuma branca. À noite organizávamos as “reuniões dançantes” nas casas de amigos e, nos fins de semana dançavamos no clube que ficava na beira da Praia da Cal ou íamos até o centro de Torres tomar sorvete. De madrugada os meninos vinham fazer serenata embaixo de nossa janela. Com tanto divertimento à noite, pela manhã não tínhamos ânimo para levantar. Dormíamos até tarde, como todo jovem em férias. Mas meus primos passavam bem cedo na nossa casa para nos chamar para irmos à praia. Gritavam lá da rua: “Vamos pra praia! Mar lindo! Céu lindo! Vamos aproveitar!”. Nós morríamos de raiva, mas acabávamos indo para não perder nada. Veraneamos em Torres por vários anos.

O que é isto no céu?
Em uma noite estrelada de verão, estávamos eu, meus irmãos, primos e alguns amigos tocando violão e cantando na varanda da casa de minha prima Ione, na praia de Torres, quando ouvimos um estrondo vindo do céu, parecendo um trovão. Olhamos assustados para o céu e vimos um clarão passando rápido em direção ao mar. Corremos todos para a beira do mar e, ao chegarmos, vimos uma luz vermelha em forma de bola parada acima da linha do horizonte, Já havia várias pessoas na beira da praia que tinham visto o mesmo fenômeno e também não sabiam o que era. Alguns subiram o Morro do Farol localizado na beira mar e, lá de cima, faziam sinais de luz com os faróis dos carros. A bola vermelha continuou no céu, impassível, por vários minutos até, finalmente, desaparecer.

A parede branca

Depois de trinta anos, entro na casa onde vivi minha infância e juventude. Os mesmos móveis, o mesmo cheiro, as mesmas cores. As lembranças povoam minha memória. Vou até o quintal. Cadê o abacateiro? Cadê a ameixeira, cujos frutos, de tão doces e amarelos, deixávamos desmanchar em nossas bocas? Do alto de seus galhos fingíamos, meus irmãos e eu, estar percorrendo longínquos países, através de aviões imaginários de longo alcance. Corro para o meu antigo quarto de dormir, abro a janela e lá está: uma imensa parede branca. Cadê o Guaíba? Onde está o famoso pôr-do-sol de Porto Alegre? O mais bonito do Brasil. Aquele que Érico Veríssimo tanto apreciava e descrevia em seus livros. Onde está a paisagem que aprendi a amar, desde menina, da janela de meu quarto, na parte alta do bairro Petrópolis? Onde está o colorido que transportava meus sonhos? O verde das árvores, a dança das nuvens, misturando-se a um indescritível azul do céu - que jamais vi ou verei em outro lugar - onde ficaram? A ganância imobiliária, a modernidade, a competitividade levaram embora. Agora, quando abro a janela vejo só a parede branca do prédio construído ao lado de minha casa.
Não há mais olhares para um estuário um rio, ou um lago. Não há mais encantos. Somente uma tela, branca, destituída de histórias, sem paixão, sem afeto, sem lembranças. Ficou a cidade lá embaixo, com seu traçado marcado por uma absoluta impessoalidade, escondida, sem o sentido que só a memória vivida consegue contar.

Casa de bonecas

Em outro Natal, ganhei de meus padrinhos Mário e Araci, uma casa de bonecas. Era uma casinha feita de madeira, toda pintada. Media mais ou menos um metro de comprimento, 80 cm de altura e 40cm de profundidade. Tinha dois andares. No de baixo, tinha sala de estar, sala de jantar e cozinha; no de cima, dois quartos e o banheiro. Uma perfeita casa.
Foi a sensação da festa. Os adultos discutiam para ver quem ia montar a casa, enquanto as crianças esperavam com impaciência para poder brincar. Quando ficou pronta (linda!), eu coloquei cuidadosamente as mobílias e os bonequinhos nos seus respectivos cômodos. Brincamos até o sono chegar. Esse foi um dos brinquedos que mais apreciei na infância. Muitos anos passaram e eu brincando com esta casinha, variando as mobílias e as estórias que inventava para seus habitantes.

Surpresa

Aos sete anos aprendi a ler. No final daquele ano de 1956, meu pai comprou a coleção completa de Monteiro Lobato para me presentear. Escondeu os livros em seu guarda-roupa para me fazer a surpresa no dia de Natal. Brincando de esconde-esconde com meus irmãos e primos, descobri os livros antes da hora. (Tínhamos a mania de nos esconder dentro dos guarda-roupas, que pareciam enormes para nós!). Não falei nada para ele. Porém, não agüentei o tempo de espera. Quando chegava da escola, mal almoçava e corria para o quarto. Sentava no chão num canto junto ao armário, e devorava as Reinações de Narizinho, Viagem ao Céu, Caçadas de Pedrinho e Memórias da Emília, minhas estórias preferidas. Quando o Natal chegou, meu pai veio todo contente me dar o presente. Apesar de já não ser surpresa para mim, adorei. Meu querido pai é que me iniciou no universo da leitura. Por ele eu viajei por lugares do mundo inteiro em companhia de personagens inesquecíveis.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Aniversário

Não lembro de festejar meus aniversários, quando criança, pois embora fevereiro seja um mes ideal, nunca havia alguém na cidade, para comemorar comigo. Todos estavam em férias, na praia, e nós, por contingência, também.

Tenho algumas fotos de meu segundo aniversário. Estou no jardim de nossa casa com algumas crianças. Eu ganhei, não sei de quem, uma vassoura de brinquedo. Em todas as fotos apareço varrendo. E, pelo visto, apreciei tanto o meu presente que até hoje fiquei com mania de limpeza. Imagine, atualmente, alguém dar uma vassoura de presente para uma criança!

Lembro também do meu aniversário de cinco anos. Minha mãe fez um bolo e alguns docinhos, arrumou uma mesa no quintal e vieram algumas poucas crianças. Havia falecido minha tia avó Alice alguns dias antes.

Nos meus 15 anos, fizemos duas festas. Uma em fevereiro, no dia 8, para toda a família. Outra, em março, quando começaram as aulas para os amigos e colegas da escola.
Na preparação da primeira festa, a da família, aconteceu um acidente. Minha mãe havia preparado docinhos, várias travessas de doces e colocado em cima do armário recém instalado na cozinha. Tarde da noite, ouvimos um estrondo. Corremos todos para a cozinha. Era o armário que havia despencado. Os doces estavam todos no chão, numa mistura de açúcar e cacos de vidro. Minha mãe quase teve um ataque. Corremos para dar um copo de água com açúcar para ela se aclamar. Mas como toda mulher guerreira, ela não desanimou. No outro dia estava lá fazendo todos os docinhos novamente. A festa foi maravilhosa. Pude confraternizar com meus pais, irmãos avós, tios e primos.

A festa para os amigos também foi preparada com todo o cuidado. Docinhos e salgados, todos feitos em casa. Minha mãe fez uma receita de bole, uma mistura de QSuco, água mineral com gás, guaraná, suco de frutas. Parecia que tinha álcool e a gurisada se deliciava, achando que estava tomando um coquetel espumante. Os móveis da sala foram todos retirados, só ficando a eletrola. Aos poucos foram chegando os convidados: minhas colegas de escola, primos, filhos das colegas de minha mãe. O assunto do dia era o surgimento de uma banda novan Inglaterra que já estava fazendo sucesso no mundo inteiro e o disco já estava estourando no Brasil. O nome da banda era The Beatles. O momento de grande emoção foi a valsa dançada com meu pai, todo orgulhoso, diante dos olhares dos convidados. Senti-me uma verdadeira estrela! O fotógrafo, tio José, não parava de tirar fotos em todos os ângulos. No outro dia, minha avó Raquel veio almoçar conosco. Vesti-me novamente com a roupa da festa para tirar fotos com ela que não pode estar na festa à noite.

Maluquice

Sueli trabalhava lá em casa. Era muito engraçada e agüentava as nossas brincadeiras de crianças, pirraças e malcriações. Estava sempre escutando um radinho de pilha portátil. Ela era apaixonada pelo companheiro, alto, musculoso, metido a conquistador. Quando brigavam, ela chegava no trabalho bem perturbada. Um dia, enquanto limpava o banheiro, escutava o tal rádio ligado na programação da rádio preferida e, ao tocar uma música mais significativa, lançou mão do vidro de desinfetante, encostou no ouvido para ouvir melhor e balançou, dentro do vaso sanitário, o rádio. Quando viu que não saía nada do desinfetante, é que se deu conta que havia trocado os objetos. Eu assistia a cena, calada, morrendo de rir. Sueli ficou lá em casa anos. Depois fez curso de corte e costura e passou a costurar nas casas como diarista. Ficou nossa amiga para sempre. Morreu de câncer no útero.

Conversa animada

Tio Olinto ia visitar a vó Alayde aos sábados. Tomavam chá com biscoitos e bolo e iam para sala conversar. A conversa era muito“animada”, pois os dois irmãos não eram exímios proseadores. Ficavam lá, sentados, olhando para a janela, cada um fechado em seus pensamentos. .De vez em quando um largava uma frase sobre o tempo. Ou perguntava sobre algum conhecido ou parente: “e o fulano, tens tido notícias?” Passado um tempo, despediam-se: “bem, minha irmã, já vou indo”. E na outra semana era a mesma coisa.

"Mão Luva"

Ele passava todos os dias na frente de nossa casa. Era um menino de uns doze anos. Tinha nas mãos enormes luvas pretas de couro, o que despertava nas crianças sentimentos de curiosidade e medo. Não sei de onde ele vinha e nem por que usava aquelas luvas. Meus irmãos e eu, bem menores do que ele, nos escondíamos atrás das folhagens para observá-lo. Como que adivinhando que nós o espiávamos, o menino colocava a mão com a luva por entre as folhagens e balançava as folhas para assustar-nos ainda mais. Era aquela gritaria e a criançada correndo para todos os lados.

Disparada

“Aprendi a galopar no cavalo”, entrei correndo na casa, feliz em contar a novidade para a família. Na fazenda, naquele campo verde imenso, galopando no cavalo, conheci, aos sete anos, a sensação de liberdade. Os cabelos voavam ao vento, o cheiro do verde molhado do capim penetrava em minhas narinas, o céu azul parecia não ter fim. Comandava o cavalo com dignidade. Aprendi a puxar as rédeas, quando queria diminuir a marcha e a soltá-las quando queria correr mais. Assim como aprendi a fazer na vida. De repente, não havia mais controle, o cavalo não obedecia mais e não queria parar. A sensação já não era de liberdade e gozo, era de medo. E os risos e os gritos não eram mais de alegria, eram de horror. As mãos suadas seguravam as rédeas com toda a força e minhas pernas grudavam na barriga do animal como os tentáculos de um polvo. Quando achei que ia até o infinito cavalgando, fui salva por um cavaleiro que veio em meu socorro e conseguiu dominar o teimoso animal. Era meu pai que, de longe, observava toda a cena e, sabiamente só se aproximou e interferiu quando viu que eu, apavorada, não seria capaz de me safar sozinha da situação. Obrigada, meu pai, por me proteger e me ensinar que, na vida a gente tem de agir no momento certo.

Palavra difícil

Mãe,como a tua filhinha é tola e infantil! Não sabe a diferença entre as luzes das ruas e as estrelas.” – Tagore

Absorta. “Aqui na sala de aula tem uma menina absorta”, disse a professora para exemplificar para a turma de terceira série do primário o que significava a “estranha” palavra que apareceu em um texto lido em sala de aula. E olhava para mim. “Absorta, eu?”, perguntei fingindo surpresa. Na verdade, o espanto não era tanto. Eu tinha plena consciência que minha imaginação por vezes fugia do controle. Meu pensamento percorria velozmente mundos, cores, flores, personagens, passado e futuro, desligando-me, muitas vezes do presente. “Eles não sabem de nada”, ria eu sozinha, pensando na professora e nos colegas que achavam que entendiam o verdadeiro significado de palavras. Até hoje eu sou meio assim. Às vezes me refugio em meus pensamentos, como se tivesse receio de reparti-los com outras pessoas. É o meu encontro com minha alma. È neste intercâmbio com a alma, mesmo involuntário, que me reciclo, que me protejo e que permito, sem medo de retaliações, que minha vida interior cintile a céu aberto para que quem entender me veja.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Na fazenda



Todos os anos passávamos o mês de janeiro na Fazenda São Jorge, no Pântano Grande, então deistrito do município de Rio Pardo. Tio Oscar, como chamávamos o proprietário da fazenda, enrolava com as mãos amareladas o cigarro de rolo tão lentamente como conversava com a peãozada à noite no galpão. Gostava de contar “causos” engraçados acontecidos pelas redondezas dos quais ele mesmo ria. De vez em quando, cuspia no chão de terra, rigorosamente varrido. Andava sempre de bombachas e chinelos de couro, aqueles típicos do gaúcho. Raramente usava sapatos ou botas. (Acho que quando os usava, doíam-lhe os pés, por falta de costume).

Tudo lá era bem limpo. Sua esposa primava pelo capricho. O quintal em vota da casa era varrido todos os dias, parecia um tapete de tão limpo. A casa era simples, mas acolhedora. Sempre tinha uma cama pronta com lençóis branquinhos e bem passados para quem chegasse para passar a noite ou ficar por vários dias. A mesa sempre farta, era arrumada com toalha engomada e talheres brilhando.

Era uma festa os verões que passávamos na fazenda. Durante o dia, corríamos explorando tudo. Andávamos a cavalo. Tomávamos banho à tarde na sanga que levava água do açude para a lavoura de arroz. Comíamos até nos fartar as frutas apanhadas no pomar, principalmente pêssegos. A lida do dia-a-dia também nos encantava: a ordenha das vacas no curral, a tosa de ovelhas, a doma dos cavalos chucros, o banho do gado para matar os carrapatos, a marcação do gado que era adquirido. Dava uma pena ao ver o couro ser queimado com o ferro quente! Quando iam tosar as ovelhas, corríamos para olhar os esquiladores manejando com destreza as tesouras cortando a lã em um só compasso. Como ficavam feinhas, as coitadas das ovelhas, despidas, sem as lãs encaracoladas.

Naquela época, não havia luz elétrica na fazenda. À noite a criançada se juntava em frente à casa e brincava de polícia e ladrão, fantasma, concurso de calouros e outras “invencionices”. A lua e as estrelas iluminavam nossas brincadeiras. De vez em quando aparecia alguém que tocava violão ou acordeão. Começava a cantoria e aí sim a festa ficava completa. Às vezes também os guris maiores colocavam lençóis por cima do corpo, viravam “fantasmas” e vinham nos assustar.

Aos domingos, o passeio era esperado com ansiedade: fazer pic nic às margens do rio Capivari, a alguns quilômetros dali. As mulheres preparavam a comida, levavam doces, sucos, pães caseiros de todos os tipos. Os homens escolhiam os melhores pedaços de carne para o churrasco. Ficávamos o dia inteiro, alternando o banho nas águas claras do rio com os quitutes. Voltávamos à tardinha, encarapitados na carroceria da camionete, Chegávamos na fazenda mortos de cansados e a cabeça cheia de sonhos. Dormíamos o sono dos deuses...

De tempos em tempos, a imagem de Nossa Senhora percorria as casas das fazendas. Quando chegava, a dona da casa que era uma católica muito fervorosa, reunia o pessoal todo – família, hóspedes, empregados - na sala para rezar o terço. Todos acompanhavam compenetrados e com fervor. Até as crianças, sem risos ou brincadeiras.

De vez em quando, tinha corrida de cavalos, as “carreiras em cancha reta”, cavadas no chão de terra vermelha, bem demarcadas na própria fazenda. Vinha gente de todos os cantos: peões pilchados, garbosamente montados em seus cavalos; mulheres com vestidos coloridos e cestas cheias de sanduíches, bolos pães e doces, crianças que corriam por todos os lados em suas brincadeiras e risadas. Eram dias cheios, coloridos e alegres.

E os doces? Figadas e pessegadas preparadas em tachos de cobre, mexidos com enormes colheres de pau, em fogo feito no chão. As mulheres ficavam mexendo a massa até ficar no ponto. A criançada sentia o cheiro de longe e, de vez em quando, chegava perto para dar uma “provadinha” naquelas delícias. Depois elas despejavam tudo em latas enormes que guardavam para serem consumidos durante o ano todo. Lembro que quanto mais tempo passava, mais saborosos ficavam: açucarados por fora e macios por dentro.

Nos feriados da Semana Santa, também íamos para lá. Era tradição colhermos “macela” nos campos, na sexta-feira santa. Não sei pra que servia a macela, acho que era para fazer chá e encher travesseiros. Sei que é uma planta nativa que tem o poder de curar. No sábado de aleluia, acordávamos cedo com o mugido do gado no curral. Os peões escolhiam uma ovelha gorda para o sacrifício. Eu não tinha coragem de assistir o abate. Morria de pena do animal, nem conseguia comer o churrasco assado cuidadosamente no fogo de chão e fartamente saboreado por todos. Mais tarde,compreendi a dimensão da oferenda que o animal fazia, entregando a sua vida para nos alimentar. É a verdadeira doação da própria vida pela do outro.