sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Herói ou mutante?

Este Blog foi criado para incentivar a reflexão sobre como relações familiares influenciam a formação dos indivíduos e, também, como indivíduos se unem para formar uma verdadeira família. As reflexões publicadas baseiam-se em minhas experiências, procurando levar cada leitor a promover as suas próprias análises, ampliando assim a compreensão da relação indivíduo x família.

Ao examinar a minha árvore genealógica constato a existência, em um de seus pilares, de um personagem que faz parte da historiografia brasileira, tanto visto como herói quanto controverso militar, que lutou na chamada Revolução Farroupilha. Refiro-me ao militar Bento Manoel Ribeiro, bisavô de minha avó materna.

Seus principais feitos estão ligados a um embate que envolveu, de um lado, um contingente de gaúchos, liderados por estancieiros e, de outro, as tropas imperiais, durante o decênio 1835-1845. Os rebeldes, pelo longo tempo de “peleja”, passaram a ser também chamados de farrapos, devido à sua precária indumentária, em razão dos desgastes por que passaram e por sua situação financeira progressivamente adversa. Por isso mesmo, o confronto também passou a ser conhecido como Guerra dos Farrapos.

Para o povo gaúcho, esse conflito bélico representa, hoje, a própria materialização de sua identidade, sendo, por isso mesmo, comemorado, anualmente, em cada 20 de setembro, como o dia do gaúcho. Nos anais dessa história farroupilha, inúmeros personagens foram considerados mitos, outros, no entanto, foram simplesmente vistos como figuras controversas, como é o caso de meu tetra avô.

O ser humano sempre deseja orgulhar-se de seus ascendentes, de ostentar, em suas origens, a figura mítica de um herói que passa à história por ser admirado, cortejado e reverenciado por seus feitos. Nesse sentido, a historiografia não deixa de considerar os grandes feitos de Bento Manoel Ribeiro, em toda a sua trajetória militar. Mas também considera, em seus anais, o fato de ele ter trocado de lado duas vezes, nas campanhas onde esteve envolvido, durante a Revolução Farroupilha.

Como sempre acontece, um exame sobre os feitos passados traz reflexos não só ao seu personagem principal, mas, também, envolve, indiretamente, a todos os seus descendentes. Parece que a análise histórica dos fatos pende muito mais para o lado de suas opções pessoais do que, propriamente, reconhece seus feitos em campos de batalha.

Prevalece mais a forma preconceituosa do que a coragem de reconhecer e elevar a quem comandou homens, enfrentou inúmeras vezes a morte de perto, foi um grande estrategista, surpreendeu seus inimigos, venceu-os em seus confrontos diretos, sem muita tecnologia, mas cara a cara, com bravura e destemor.

O ser humano gosta de impor rótulos, muito mais do que elevar figuras humanas. E, certamente, tais efeitos danosos também recaem sobre seus descendentes: “ah! Tu és parente do fulano?” exibindo um sorriso irônico na face. Já os parentes diretos, sob olhares suspeitos, tendem a examinar esses atores a partir de suas reais condições. Desde pequena sempre ouvi as pessoas mais velhas da família enaltecerem os feitos militares deste parente distante, desprezando toda a controvérsia que seu nome evoca.

Quem foi Bento Manoel Ribeiro? A historiografia o retrata como um homem incomum, que possuía um temperamento igualmente incomum. Nasceu em 1783, em Sorocaba, São Paulo, filho do tropeiro Manoel Ribeiro de Almeida. Pelo lado materno descendia do bandeirante Anhangüera e do português João Ramalho e, pela linha paterna, de Pedro Taques.

Com sete anos veio para o Rio Grande do Sul, como piá de uma estância, em Rio Pardo.

Em 1800, aos 18 anos, ingressou nas fileiras do Regimento Dragões do Rio Pardo como soldado raso. Sua carreira militar durou 54 anos, sendo ela encerrada no posto de Marechal do Exército Brasileiro.

Era descrito como um militar estrategista. Possuía um amplo conhecimento sobre os habitantes da chamada “campanha” (meio rural), instalados na Província do Rio Grande. Tinha muito prestígio no meio onde circulava e sua liderança levantava os ânimos e dava coragem aos combatentes. Quando a legalidade estava caída, ele, com sua presença, dava-lhe vida e, quando a causa da República precisava alento, ele lhe dava.

Prestou relevantes serviços militares à Integridade e soberania do Brasil, tanto como colônia quanto independente, desde um simples soldado até chegar a marechal do Exército Imperial. Lutou nas guerras do Sul, de 1801, 1811-12, 1816 e 1821, 1825-28 e 1851-52, onde se firmou entre as maiores espadas de seu tempo. Foi militar de raros méritos táticos, era profundo conhecedor do território onde combatia e detentor de grande capacidade de nele orientar-se.

Conseguiu, graças a seu carisma, liderar ações em combate e bem combinar Infantaria e Cavalaria, além de possuir conhecimento apreciável sobre a psicologia de seus homens e de seus adversários. Lutou pelo Rio Grande sem perder de vista a integridade do Brasil e também lutou pelo Brasil, enaltecendo o Rio Grande do Sul na conformação da nação brasileira.

Durante o tempo em que durou a Revolução Farroupilha, em função de seu temperamento singular, em defesa de seus interesses e por seguir as suas próprias regras, ao invés das dos governos que serviu, adotou posições até hoje controvertidas e aparentemente inexplicáveis.

Ao combater ora ao lado dos farrapos, ora ao lado dos imperiais, sempre desequilibrou, acentuadamente, o prato da balança, em favor da causa que defendia. Inicialmente como farrapo, depois como imperial, novamente como farrapo e, finalmente, depois de mais de dois anos de neutralidade, lutou pelo Império até o final da Revolução, "como vaqueano-mor de Caixas". Deu grande contribuição à conquista e à preservação dos objetivos do Brasil de unidade, integridade e soberania.

Morreu com 72 anos de idade, rico, mas sem livrar-se da fama controvertida. Sobre ele escreveu o veterano farrapo Ten. Caldeira: “foi indiscutivelmente a maior espada do Rio Grande do seu tempo e o maior especialista na Guerra de Coxilhas ou na Arte Militar dos Pampas”.

Hoje, como sua descendente, não fixo o meu olhar tão somente na controvérsia que a história deixa transparecer, mas exalto seu espírito guerreiro, que lutou com bravura e fidelidade em cada lado escolhido. O que importa é como se dedicou a perseguir aquilo que achava certo. Ainda mais dentro de um conflito que durou longos dez anos e que deixou exauridas as tropas, maltrapilhas, corroídas pelo sofrimento e, como qualquer outra guerra, chegou a resultados muito distantes dos ideais traçados ao seu início.

Ao cabo de tanto desgaste, já não há mais ligação entre os motivos que deflagraram o conflito e as razões para chegar ao fim de um verdadeiro flagelo, como neste caso, onde pereceram cerca de 3.500 heróis, em sua maioria aqueles que se insurgiram contra a cobrança desmedida de impostos, o desprezo pela autonomia regional e o desdém pela identidade de um povo. Guerra é sempre sinônimo de dor e sofrimento, nunca de lucidez e racionalismo. Por isso quem nunca a viveu não pode julgá-la segundo valores trazidos dos tempos de paz, de ordem e civilidade.

Há, em cada um de nós, a figura de um mutante, assim como a de um herói. O olhar sobre a história é sempre subjetivo e depende de quem se debruça sobre o seu objeto. .Fica em nós, seus descentes, a certeza de que o ser humano pode mudar muitas vezes o seu caminho sem perder, no entanto, sua integridade e seus valores existenciais.

Bento Manoel Ribeiro fez as suas opções em pleno campo de batalha. Hoje, sem comprometer suas vidas, suas fileiras, troca-se descompromissadamente de partidos e de ideologias sem que isso assuma quaisquer conotações controversas.




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