sábado, 17 de abril de 2010

Verões na praia

Todos os anos, no mês de fevereiro, quando tirava férias, meu pai alugava uma casa na praia. A mania de todo portoalegrense é ir para a praia no verão. Primeiro, íamos para Pinhal, uma pequena praia no litoral sul do estado. Era uma festa! Lembro que uma vez fomos para uma casa que ficava rodeada de cômoros de areia. Era areia para todos os lados. Quando ventava, a areia entrava na casa. Quando íamos deitar, as camas estavam cheias de areia e tínhamos de sacudir os lençóis e estendê-los novamente. Quando chovia, lagoas se formavam entre as dunas. Divertíamo-nos, correndo nas pequenas lagoas que eram bem rasas, jogando água para todo o lado. Lembro de uma vez, que nessas brincadeiras, correndo atrás de nós, tia Célia foi sugada pela areia. De repente, foi afundando e já estava enterrada até a cintura, quando meu pai chegou. Ele conseguiu alcançar para ela um pedaço de pau – não sei onde ele arrumou naquela hora – e puxou-a para um lugar seco. Depois desse susto, não brincamos mais nas dunas em tempos de chuva. Não sei se foi por causa disso, mas meus pais não quiseram mais ir para Pinhal.
Então, começaram a alugar uma casa em Arroio do Sal, simpática praia no litoral norte. Durante uns três anos alugavam a casa de dona Chiquinha. Era uma casa bem espaçosa, com varanda em todos os lados, onde pendurávamos as redes. Porém, não havia um banheiro completo na casa, pois não havia água encanada naquela praia. Era tudo bem rudimentar. Era preciso tocar uma bomba para encher a caixa d’água que abastecia somente a cozinha, e o banheiro. No banheiro dentro de casa, só havia uma pia e um chuveiro frio. As “necessidades” eram feitas em uma casinha de madeira com um buraco no chão, situada no fundo do terreno. Chamávamos o cubículo de “casinha misteriosa”. Meu pai gostou muito desta praia e acabou comprando um terreno lá. Veraneamos também uns dois anos em Santa Terezinha, perto de Capão da Canoa. Lá já havia um pouco mais de conforto. Depois, voltamos por mais uns dois anos a passar as férias em Arroio do Sal em uma casa alugada em outra rua. Esta já continha um banheiro completo. Mas as paredes da casa eram todas cheias de furos na madeira. Meu pai alugou a casa sem saber que estava em péssimo estado, acho que ele alugou por anuncio do jornal. Só percebeu o estado da casa quando chegamos lá. Aí ele já havia pago o aluguel e resolveu ficar lá com a família para aproveitar o tempo bom que fazia. Só eu que não pude aproveitar os banhos de mar daquele verão ensolarado. Naquele ano, fiquei cheia de furúnculos nas pernas. Quase não aproveitei o veraneio, pois tinha de ficar em casa por não poder caminhar devido às dores e para não infeccionar com a areia e a água do mar. Quem me medicava era um vizinho, o dr. Peixoto, que era um veterinário. Ele me receitou antibióticos e pomadas que me aliviavam as dores. Todos riam e faziam chacotas por eu estar sendo tratada por um veterinário. E eu levava tudo na brincadeira. Enfim, fui bem tratada e melhorei. Como sempre gostei de ler, passei o verão lendo, fazendo palavras cruzadas e jogando cartas.
Já na adolescência veraneamos em Torres, uma das mais belas praias do Brasil. O marido de minha prima havia construído uma casa na Praia da Cal e insistiu muito para que meus pais fossem passar o verão na mesma praia. Meu pai alugou então a casa dona Amélia Maristani, uma pintora, amiga da família. Os veraneios em Torres foram maravilhosos. Formamos uma turma boa. Curtíamos as belezas da Praia da Cal, da Praia Grande, da Guarita, do rio Mambituba, os passeios até o alto do Morro do Farol ou o Morro das Furnas, as fortes ondas batendo furiosas nos rochedos, espalhando espuma branca. À noite organizávamos as “reuniões dançantes” nas casas de amigos e, nos fins de semana dançavamos no clube que ficava na beira da Praia da Cal ou íamos até o centro de Torres tomar sorvete. De madrugada os meninos vinham fazer serenata embaixo de nossa janela. Com tanto divertimento à noite, pela manhã não tínhamos ânimo para levantar. Dormíamos até tarde, como todo jovem em férias. Mas meus primos passavam bem cedo na nossa casa para nos chamar para irmos à praia. Gritavam lá da rua: “Vamos pra praia! Mar lindo! Céu lindo! Vamos aproveitar!”. Nós morríamos de raiva, mas acabávamos indo para não perder nada. Veraneamos em Torres por vários anos.

O que é isto no céu?
Em uma noite estrelada de verão, estávamos eu, meus irmãos, primos e alguns amigos tocando violão e cantando na varanda da casa de minha prima Ione, na praia de Torres, quando ouvimos um estrondo vindo do céu, parecendo um trovão. Olhamos assustados para o céu e vimos um clarão passando rápido em direção ao mar. Corremos todos para a beira do mar e, ao chegarmos, vimos uma luz vermelha em forma de bola parada acima da linha do horizonte, Já havia várias pessoas na beira da praia que tinham visto o mesmo fenômeno e também não sabiam o que era. Alguns subiram o Morro do Farol localizado na beira mar e, lá de cima, faziam sinais de luz com os faróis dos carros. A bola vermelha continuou no céu, impassível, por vários minutos até, finalmente, desaparecer.

A parede branca

Depois de trinta anos, entro na casa onde vivi minha infância e juventude. Os mesmos móveis, o mesmo cheiro, as mesmas cores. As lembranças povoam minha memória. Vou até o quintal. Cadê o abacateiro? Cadê a ameixeira, cujos frutos, de tão doces e amarelos, deixávamos desmanchar em nossas bocas? Do alto de seus galhos fingíamos, meus irmãos e eu, estar percorrendo longínquos países, através de aviões imaginários de longo alcance. Corro para o meu antigo quarto de dormir, abro a janela e lá está: uma imensa parede branca. Cadê o Guaíba? Onde está o famoso pôr-do-sol de Porto Alegre? O mais bonito do Brasil. Aquele que Érico Veríssimo tanto apreciava e descrevia em seus livros. Onde está a paisagem que aprendi a amar, desde menina, da janela de meu quarto, na parte alta do bairro Petrópolis? Onde está o colorido que transportava meus sonhos? O verde das árvores, a dança das nuvens, misturando-se a um indescritível azul do céu - que jamais vi ou verei em outro lugar - onde ficaram? A ganância imobiliária, a modernidade, a competitividade levaram embora. Agora, quando abro a janela vejo só a parede branca do prédio construído ao lado de minha casa.
Não há mais olhares para um estuário um rio, ou um lago. Não há mais encantos. Somente uma tela, branca, destituída de histórias, sem paixão, sem afeto, sem lembranças. Ficou a cidade lá embaixo, com seu traçado marcado por uma absoluta impessoalidade, escondida, sem o sentido que só a memória vivida consegue contar.

Casa de bonecas

Em outro Natal, ganhei de meus padrinhos Mário e Araci, uma casa de bonecas. Era uma casinha feita de madeira, toda pintada. Media mais ou menos um metro de comprimento, 80 cm de altura e 40cm de profundidade. Tinha dois andares. No de baixo, tinha sala de estar, sala de jantar e cozinha; no de cima, dois quartos e o banheiro. Uma perfeita casa.
Foi a sensação da festa. Os adultos discutiam para ver quem ia montar a casa, enquanto as crianças esperavam com impaciência para poder brincar. Quando ficou pronta (linda!), eu coloquei cuidadosamente as mobílias e os bonequinhos nos seus respectivos cômodos. Brincamos até o sono chegar. Esse foi um dos brinquedos que mais apreciei na infância. Muitos anos passaram e eu brincando com esta casinha, variando as mobílias e as estórias que inventava para seus habitantes.

Surpresa

Aos sete anos aprendi a ler. No final daquele ano de 1956, meu pai comprou a coleção completa de Monteiro Lobato para me presentear. Escondeu os livros em seu guarda-roupa para me fazer a surpresa no dia de Natal. Brincando de esconde-esconde com meus irmãos e primos, descobri os livros antes da hora. (Tínhamos a mania de nos esconder dentro dos guarda-roupas, que pareciam enormes para nós!). Não falei nada para ele. Porém, não agüentei o tempo de espera. Quando chegava da escola, mal almoçava e corria para o quarto. Sentava no chão num canto junto ao armário, e devorava as Reinações de Narizinho, Viagem ao Céu, Caçadas de Pedrinho e Memórias da Emília, minhas estórias preferidas. Quando o Natal chegou, meu pai veio todo contente me dar o presente. Apesar de já não ser surpresa para mim, adorei. Meu querido pai é que me iniciou no universo da leitura. Por ele eu viajei por lugares do mundo inteiro em companhia de personagens inesquecíveis.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Aniversário

Não lembro de festejar meus aniversários, quando criança, pois embora fevereiro seja um mes ideal, nunca havia alguém na cidade, para comemorar comigo. Todos estavam em férias, na praia, e nós, por contingência, também.

Tenho algumas fotos de meu segundo aniversário. Estou no jardim de nossa casa com algumas crianças. Eu ganhei, não sei de quem, uma vassoura de brinquedo. Em todas as fotos apareço varrendo. E, pelo visto, apreciei tanto o meu presente que até hoje fiquei com mania de limpeza. Imagine, atualmente, alguém dar uma vassoura de presente para uma criança!

Lembro também do meu aniversário de cinco anos. Minha mãe fez um bolo e alguns docinhos, arrumou uma mesa no quintal e vieram algumas poucas crianças. Havia falecido minha tia avó Alice alguns dias antes.

Nos meus 15 anos, fizemos duas festas. Uma em fevereiro, no dia 8, para toda a família. Outra, em março, quando começaram as aulas para os amigos e colegas da escola.
Na preparação da primeira festa, a da família, aconteceu um acidente. Minha mãe havia preparado docinhos, várias travessas de doces e colocado em cima do armário recém instalado na cozinha. Tarde da noite, ouvimos um estrondo. Corremos todos para a cozinha. Era o armário que havia despencado. Os doces estavam todos no chão, numa mistura de açúcar e cacos de vidro. Minha mãe quase teve um ataque. Corremos para dar um copo de água com açúcar para ela se aclamar. Mas como toda mulher guerreira, ela não desanimou. No outro dia estava lá fazendo todos os docinhos novamente. A festa foi maravilhosa. Pude confraternizar com meus pais, irmãos avós, tios e primos.

A festa para os amigos também foi preparada com todo o cuidado. Docinhos e salgados, todos feitos em casa. Minha mãe fez uma receita de bole, uma mistura de QSuco, água mineral com gás, guaraná, suco de frutas. Parecia que tinha álcool e a gurisada se deliciava, achando que estava tomando um coquetel espumante. Os móveis da sala foram todos retirados, só ficando a eletrola. Aos poucos foram chegando os convidados: minhas colegas de escola, primos, filhos das colegas de minha mãe. O assunto do dia era o surgimento de uma banda novan Inglaterra que já estava fazendo sucesso no mundo inteiro e o disco já estava estourando no Brasil. O nome da banda era The Beatles. O momento de grande emoção foi a valsa dançada com meu pai, todo orgulhoso, diante dos olhares dos convidados. Senti-me uma verdadeira estrela! O fotógrafo, tio José, não parava de tirar fotos em todos os ângulos. No outro dia, minha avó Raquel veio almoçar conosco. Vesti-me novamente com a roupa da festa para tirar fotos com ela que não pode estar na festa à noite.

Maluquice

Sueli trabalhava lá em casa. Era muito engraçada e agüentava as nossas brincadeiras de crianças, pirraças e malcriações. Estava sempre escutando um radinho de pilha portátil. Ela era apaixonada pelo companheiro, alto, musculoso, metido a conquistador. Quando brigavam, ela chegava no trabalho bem perturbada. Um dia, enquanto limpava o banheiro, escutava o tal rádio ligado na programação da rádio preferida e, ao tocar uma música mais significativa, lançou mão do vidro de desinfetante, encostou no ouvido para ouvir melhor e balançou, dentro do vaso sanitário, o rádio. Quando viu que não saía nada do desinfetante, é que se deu conta que havia trocado os objetos. Eu assistia a cena, calada, morrendo de rir. Sueli ficou lá em casa anos. Depois fez curso de corte e costura e passou a costurar nas casas como diarista. Ficou nossa amiga para sempre. Morreu de câncer no útero.

Conversa animada

Tio Olinto ia visitar a vó Alayde aos sábados. Tomavam chá com biscoitos e bolo e iam para sala conversar. A conversa era muito“animada”, pois os dois irmãos não eram exímios proseadores. Ficavam lá, sentados, olhando para a janela, cada um fechado em seus pensamentos. .De vez em quando um largava uma frase sobre o tempo. Ou perguntava sobre algum conhecido ou parente: “e o fulano, tens tido notícias?” Passado um tempo, despediam-se: “bem, minha irmã, já vou indo”. E na outra semana era a mesma coisa.

"Mão Luva"

Ele passava todos os dias na frente de nossa casa. Era um menino de uns doze anos. Tinha nas mãos enormes luvas pretas de couro, o que despertava nas crianças sentimentos de curiosidade e medo. Não sei de onde ele vinha e nem por que usava aquelas luvas. Meus irmãos e eu, bem menores do que ele, nos escondíamos atrás das folhagens para observá-lo. Como que adivinhando que nós o espiávamos, o menino colocava a mão com a luva por entre as folhagens e balançava as folhas para assustar-nos ainda mais. Era aquela gritaria e a criançada correndo para todos os lados.

Disparada

“Aprendi a galopar no cavalo”, entrei correndo na casa, feliz em contar a novidade para a família. Na fazenda, naquele campo verde imenso, galopando no cavalo, conheci, aos sete anos, a sensação de liberdade. Os cabelos voavam ao vento, o cheiro do verde molhado do capim penetrava em minhas narinas, o céu azul parecia não ter fim. Comandava o cavalo com dignidade. Aprendi a puxar as rédeas, quando queria diminuir a marcha e a soltá-las quando queria correr mais. Assim como aprendi a fazer na vida. De repente, não havia mais controle, o cavalo não obedecia mais e não queria parar. A sensação já não era de liberdade e gozo, era de medo. E os risos e os gritos não eram mais de alegria, eram de horror. As mãos suadas seguravam as rédeas com toda a força e minhas pernas grudavam na barriga do animal como os tentáculos de um polvo. Quando achei que ia até o infinito cavalgando, fui salva por um cavaleiro que veio em meu socorro e conseguiu dominar o teimoso animal. Era meu pai que, de longe, observava toda a cena e, sabiamente só se aproximou e interferiu quando viu que eu, apavorada, não seria capaz de me safar sozinha da situação. Obrigada, meu pai, por me proteger e me ensinar que, na vida a gente tem de agir no momento certo.

Palavra difícil

Mãe,como a tua filhinha é tola e infantil! Não sabe a diferença entre as luzes das ruas e as estrelas.” – Tagore

Absorta. “Aqui na sala de aula tem uma menina absorta”, disse a professora para exemplificar para a turma de terceira série do primário o que significava a “estranha” palavra que apareceu em um texto lido em sala de aula. E olhava para mim. “Absorta, eu?”, perguntei fingindo surpresa. Na verdade, o espanto não era tanto. Eu tinha plena consciência que minha imaginação por vezes fugia do controle. Meu pensamento percorria velozmente mundos, cores, flores, personagens, passado e futuro, desligando-me, muitas vezes do presente. “Eles não sabem de nada”, ria eu sozinha, pensando na professora e nos colegas que achavam que entendiam o verdadeiro significado de palavras. Até hoje eu sou meio assim. Às vezes me refugio em meus pensamentos, como se tivesse receio de reparti-los com outras pessoas. É o meu encontro com minha alma. È neste intercâmbio com a alma, mesmo involuntário, que me reciclo, que me protejo e que permito, sem medo de retaliações, que minha vida interior cintile a céu aberto para que quem entender me veja.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Na fazenda



Todos os anos passávamos o mês de janeiro na Fazenda São Jorge, no Pântano Grande, então deistrito do município de Rio Pardo. Tio Oscar, como chamávamos o proprietário da fazenda, enrolava com as mãos amareladas o cigarro de rolo tão lentamente como conversava com a peãozada à noite no galpão. Gostava de contar “causos” engraçados acontecidos pelas redondezas dos quais ele mesmo ria. De vez em quando, cuspia no chão de terra, rigorosamente varrido. Andava sempre de bombachas e chinelos de couro, aqueles típicos do gaúcho. Raramente usava sapatos ou botas. (Acho que quando os usava, doíam-lhe os pés, por falta de costume).

Tudo lá era bem limpo. Sua esposa primava pelo capricho. O quintal em vota da casa era varrido todos os dias, parecia um tapete de tão limpo. A casa era simples, mas acolhedora. Sempre tinha uma cama pronta com lençóis branquinhos e bem passados para quem chegasse para passar a noite ou ficar por vários dias. A mesa sempre farta, era arrumada com toalha engomada e talheres brilhando.

Era uma festa os verões que passávamos na fazenda. Durante o dia, corríamos explorando tudo. Andávamos a cavalo. Tomávamos banho à tarde na sanga que levava água do açude para a lavoura de arroz. Comíamos até nos fartar as frutas apanhadas no pomar, principalmente pêssegos. A lida do dia-a-dia também nos encantava: a ordenha das vacas no curral, a tosa de ovelhas, a doma dos cavalos chucros, o banho do gado para matar os carrapatos, a marcação do gado que era adquirido. Dava uma pena ao ver o couro ser queimado com o ferro quente! Quando iam tosar as ovelhas, corríamos para olhar os esquiladores manejando com destreza as tesouras cortando a lã em um só compasso. Como ficavam feinhas, as coitadas das ovelhas, despidas, sem as lãs encaracoladas.

Naquela época, não havia luz elétrica na fazenda. À noite a criançada se juntava em frente à casa e brincava de polícia e ladrão, fantasma, concurso de calouros e outras “invencionices”. A lua e as estrelas iluminavam nossas brincadeiras. De vez em quando aparecia alguém que tocava violão ou acordeão. Começava a cantoria e aí sim a festa ficava completa. Às vezes também os guris maiores colocavam lençóis por cima do corpo, viravam “fantasmas” e vinham nos assustar.

Aos domingos, o passeio era esperado com ansiedade: fazer pic nic às margens do rio Capivari, a alguns quilômetros dali. As mulheres preparavam a comida, levavam doces, sucos, pães caseiros de todos os tipos. Os homens escolhiam os melhores pedaços de carne para o churrasco. Ficávamos o dia inteiro, alternando o banho nas águas claras do rio com os quitutes. Voltávamos à tardinha, encarapitados na carroceria da camionete, Chegávamos na fazenda mortos de cansados e a cabeça cheia de sonhos. Dormíamos o sono dos deuses...

De tempos em tempos, a imagem de Nossa Senhora percorria as casas das fazendas. Quando chegava, a dona da casa que era uma católica muito fervorosa, reunia o pessoal todo – família, hóspedes, empregados - na sala para rezar o terço. Todos acompanhavam compenetrados e com fervor. Até as crianças, sem risos ou brincadeiras.

De vez em quando, tinha corrida de cavalos, as “carreiras em cancha reta”, cavadas no chão de terra vermelha, bem demarcadas na própria fazenda. Vinha gente de todos os cantos: peões pilchados, garbosamente montados em seus cavalos; mulheres com vestidos coloridos e cestas cheias de sanduíches, bolos pães e doces, crianças que corriam por todos os lados em suas brincadeiras e risadas. Eram dias cheios, coloridos e alegres.

E os doces? Figadas e pessegadas preparadas em tachos de cobre, mexidos com enormes colheres de pau, em fogo feito no chão. As mulheres ficavam mexendo a massa até ficar no ponto. A criançada sentia o cheiro de longe e, de vez em quando, chegava perto para dar uma “provadinha” naquelas delícias. Depois elas despejavam tudo em latas enormes que guardavam para serem consumidos durante o ano todo. Lembro que quanto mais tempo passava, mais saborosos ficavam: açucarados por fora e macios por dentro.

Nos feriados da Semana Santa, também íamos para lá. Era tradição colhermos “macela” nos campos, na sexta-feira santa. Não sei pra que servia a macela, acho que era para fazer chá e encher travesseiros. Sei que é uma planta nativa que tem o poder de curar. No sábado de aleluia, acordávamos cedo com o mugido do gado no curral. Os peões escolhiam uma ovelha gorda para o sacrifício. Eu não tinha coragem de assistir o abate. Morria de pena do animal, nem conseguia comer o churrasco assado cuidadosamente no fogo de chão e fartamente saboreado por todos. Mais tarde,compreendi a dimensão da oferenda que o animal fazia, entregando a sua vida para nos alimentar. É a verdadeira doação da própria vida pela do outro.