sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Eu, pintora?







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Por que você não pinta?, perguntou-me, certa vez, uma amiga.
"Você sabe combinar as cores ao se vestir."

Vacilei, com suas palavras, mas fiquei intrigada. Nunca havia sequer imaginado que poderia me atrever a dar uns rabiscos no papel. Até que um dia me animei. Inscrevi-me em um curso de pintura em tela e pensei: “Vamos em frente! Vamos ver no que vai dar”.

Ao começar o curso, constatei que a pintura é um processo aberto. Como escrever. Você olha a tela em branco, assim como encara a folha de papel ou a tela aberta do computador. Ela está ali. Na tua frente, exortando um olhar diferente.

Uma infinidade de cores em tintas e alguns pinceis acompanham a tela em branco. Tudo é surpresa. E você não sabe o que vai acontecer. São infinitas possibilidades. Só falta aquele ato de coragem de dar os primeiros traços. E, quando ele sai, tudo é criação.

A criação é um processo de autoconhecimento. Você vai descerrando os véus e descobrindo o mundo a sua volta. É o aprendizado de educar o olhar. Com as primeiras impressões, sobre a tela, passei a me surpreender observando mais atentamente o céu, as suas nuances, os tons de azul, o formato das nuvens, e, também, os inúmeros tons de verde, luz e sombra das árvores por onde passo... Observo as cores na plumagem dos pássaros. De repente, descubro, dentro de mim, sentimentos e sensações que dantes estavam bem escondidos, intocáveis.

Quantos já passaram por essa experiência? Penso nos pintores com a boca e com os pés. Sua criatividade é fruto da superação de todos os obstáculos, até chegar a produzir uma obra reconhecida, completa, concreta, entre o imaginar e o realizar. Como dizia o grande Picasso: “A inspiração existe, porém temos que encontrá-la trabalhando”.

Essa é uma regra geral: quantos tiveram que superar os mais variados desafios para tornarem-se consagrados, admirados e reconhecidos. Muitas deles, em vida, não chegaram a conhecer a fama, como foi o caso, entre outros, de Van Gogh (1853-1890), incompreendido em seu tempo, desajustado, maldito por seus contemporâneos. Só depois de morto, foi aclamado para a posteridade.

Também Cézanne (1939-1906) que, na escola, tirava notas altas, em todas as matérias, menos em desenho e, quando tentou entrar na escola de Belas Artes, por duas vezes, foi reprovado. Os críticos da época zombavam de sua arte.

Paul Gauguin (1848-1903) foi outro que, inicialmente, pintava por hobby e, ao perder seu bom emprego, resolveu ganhar dinheiro com sua pintura. Não conseguiu. Morreu pobre e doente.

Em todos eles, há a vontade de superação de seus próprios limites, há o enfrentamento de todas as vicissitudes da vida para realização de seus sonhos. E, no meio do caminho, quantos deles chegaram a pensar em desistir, abandonar todos os seus sonhos, fugir de suas obras, deixar suas tintas e pinceis repousando, com medo de serem reprovados por seus públicos ou críticos? Quanto lhes custou perseverar, quebrar barreiras, vencer a timidez, o medo, a reprovação? - “O que os outros vão dizer?”- Mas seguiram em frente, com coragem...

E o que dizer daqueles que elevaram seus egos para além de suas críticas, como Salvador Dali (1904/1989), que dizia que as duas coisas mais felizes que podem acontecer a um pintor é ser espanhol (como ele) e se chamar Dalí”...Ou Picasso ( 1881/1973) que amou as mulheres com a mesma intensidade com que produziu a sua obra...

Quanto a mim, ainda não sei de minhas pretensões. Basta-me ir descobrindo, aos poucos, o caminho por onde as tintas me levam... e ter consciência de que o ato de pintar abre uma nova visão da vida através de um olhar renovado, para entender as cores que Deus colocou em seu quadro, tão concreto, tão abstrato de sua Obra. Sigo pelos caminhos do aprendizado, ainda engatinhando, despreocupada em ser uma pintora consagrada, mas disposta a descobrir novos véus.

Afinal, isso vale para todos os que recebem elogios. Não para enaltecer seus egos, mas, quem sabe, para chamar atenção sobre suas inquietudes. Como um verdadeiro empurrão, para despertar coragens, abrir universos e levar a novos tons, bastando apenas redirecionar antigos olhares para dar vida a telas brancas de pintura, folhas em branco ou telas de computador.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Receitas da vovó

Vive dentro de mim a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola. Quitute bem feito .
Panela de barro.Taipa de linha.
Cozinha antiga, toda pretinha
.”

Quando leio os poemas de Cora Coralina lembro-me de minha avó Raquel. Ela era exímia cozinheira. Quituteira de mão cheia. Fazia doces e pães maravilhosos. Achei nas coisas de minha mãe, amarelado pelo tempo, um caderno de receitas escritas por minha avó, com uma caligrafia fina e caprichada: bolinhos delicados, bolo de nozes, pudim de laranja, queijadinhas, merengues em calda, bacalhau com leite, empadinhas, entre outras delícias. São receitas provadas e aprovadas por aqueles que tiveram o privilégio de saboreá-las. Guardei como uma relíquia. Ainda não fiz nenhuma das receitas. Não me senti à altura. Mas o caderno está lá, em lugar de destaque. Um dia me encorajo...

Minha avó materna morreu aos 89 anos. Era uma mulher alta, gorda e tinha um sorriso aberto, muito bonito. Pele bem clara, cabelos lisos e expressivos olhos castanhos. Casou muito jovem, com 17 anos; teve nove filhos, trinta netos e já perdi a conta de quantos bisnetos e tataranetos. Ficou viúva aos quarenta e poucos anos e, sua vida, até então sem grandes preocupações financeiras, sofreu uma reviravolta. A responsabilidade da família ficou por conta do seu filho Mário que assumiu a educação dos irmãos mais novos e a direção da casa. Para manter e ajudar o filho nas despesas, minha avó fazia doces, pães e bolos para vender. O sucesso era certo e a clientela só aumentava. Aos poucos, meu tio foi-se fortalecendo financeiramente e vó Raquel passou a exibir seus dons de quituteira somente para os mais chegados.

O ponto alto era a comemoração de seu aniversário, dia 24 de junho, dia de São João. À noite, a família toda – filhos, netos e demais parentes - reunia-se para reverenciar a data. Uma enorme fogueira era montada e acesa na rua, em frente à casa. Deliciávamo-nos com os quitutes típicos - a maioria preparados por ela - e com as brincadeiras junto à fogueira. Meus primos mais velhos vestiam-se com trajes caipiras, colocavam uma barriga postiça, pintavam bigodes e cavanhaques e faziam um monte de palhaçadas para a criançada.

Uma vez ao ano, junto com minha tia, vó Raquel passava uma temporada no Rio de Janeiro, visitando os dois filhos que lá moravam. Gostavam de viajar de navio. Quando chegavam, íamos buscá-las no cais do Porto e era aquela festa com os presentes que traziam. Uma vez, ela trouxe para mim e para a minha irmã duas bonecas de louça. As bonecas, últimas novidades em matéria de brinquedos, nos encantaram, com seus cabelos cacheados, vestidos de organdi, sapatos e bolsas. De tanto pentearmos os cabelos das bonecas, logo, coitadas, ficaram carecas.

Já mais idosa, não se dedicava mais à cozinha. Mas quando a visitávamos, íamos direto para o seu quarto, onde escondia, especialmente para nós, balas e biscoitos delicadamente acomodados em latas coloridas, os quais saboreávamos jogando conversa fora.

Minha avó nunca teve doença grave. Tinha boa saúde. Nos últimos anos é que as pernas já não tinham a mesma energia, andava com dificuldade. Da minha festa de 15 anos ela não pode participar e nem preparar os quitutes. Mas a festa contou indiretamente com sua presença, pois minha mãe se encarregou de preparar com todo o esmero as suas receitas de doces e salgados. No dia seguinte, meu pai foi buscá-la de carro para almoçar conosco. Minha mãe fez com que eu vestisse o vestido da festa, chamou o fotógrafo e minha vó e eu tiramos uma foto para lembrança.

Hoje em dia quando estou na cozinha, preparando o alimento para minha família, reinventando sabores e cores, sentindo o cheiro se espalhar pela casa, penso em minha avó quituteira. Ainda sinto em minha boca o gosto dos papos de anjo, dos quindins, das rapadurinhas de leite, dos pães quentinhos, dos bem-casados, misturados com o seu carinho...

Um pouco de melancolia teima em ficar no ar, quando penso que esses prazeres se perderam no tempo com o corre-corre da vida moderna, que leva as pessoas aos supermercados, aos fast foods, aos self services. No entanto ainda prefiro manter os hábitos culinários que minha avó me inspirou, ao tempo em que preparar uma saborosa receita pertence ao mesmo ritual de quem faz poesia, sem pressa, sem se deixar dominar pelas horas, usando os mesmos ingredientes para agradar não só estômagos, mas para encher a alma de gestos completos de mulheres que experimentam a vida em todos os seus sabores, assim como fazia a minha avó.

domingo, 8 de agosto de 2010

De fantasmas e de fantasias

Era uma noite quente de verão. Todos dormiam em casa procurando usufruir ao máximo a leve brisa que entrava pelas janelas. Dormíamos as três meninas no mesmo quarto, cada uma em sua cama, bem confortáveis e seguras. De repente ouviu-se um grito na madrugada: “Tem uma mulher mexendo no guarda-roupa da vó”.

A família inteira acordou assustada, pois a avó tinha viajado e, logicamente, não estava no quarto. Meu pai levantou-se apreensivo, calçou as chinelas, e correu para o quarto em questão. Não encontrando ninguém, dali desceu as escadas e, acendendo as luzes, fez a vistoria na casa inteira. Olhou a rua, tudo tranqüilo. Nada que indicasse arrombamento ou algo parecido. A vizinhança estava toda em silêncio. Nenhum cachorro latia.

Minha mãe, ainda sonolenta, tentava consolar as três filhas que, de olhos arregalados, temiam voltar para suas camas. “Não há ninguém aqui, minha filha”, dizia meu pai com seu sorriso amoroso. “Eu vi, sim, pai”, afirmava minha irmã mais nova, com a experiência de seus três anos de idade. Ela havia levantado para ir ao banheiro e, ao passar em frente à porta do quarto da avó, enxergou a tal mulher, a qual descrevia com detalhes. As crianças menores possuem uma sensibilidade espiritual muito grande e existem relatos que comprovam esta afirmação. Mas meus pais não pensavam nisso naquele momento. Queriam acalmar as filhas e voltar a dormir, uma vez que, vistoriada a casa, nada havia sido encontrado. Mas a rebordosa já estava armada.

Manifestando nossa sensibilidade infantil, não nos conformávamos com as explicações de ordem material dada por nossos pais e ficamos intrigadas, abrindo a possibilidade de que algo mais realmente poderia existir ali. Ainda permanecemos um bom tempo exigindo a atenção dos pais, até que, finalmente, o cansaço foi mais forte e voltamos a dormir. No outro dia, tudo voltou ao normal.

Anos depois, me deparo com relatos semelhantes de meus filhos que afirmavam, com esta mesma idade, ver vultos subindo as escadas de nossa casa ou perto de suas camas.

Encarei esses fatos com naturalidade. Segundo psicólogos as crianças com menos de sete anos não vêem nada de anormal nessas experiências e eu também.

Alguns pais costumam intimidar ou inibir esses relatos. Em conseqüência, muitos problemas interiores podem surgir. É assim que a criança passa a acreditar que nem tudo é possível, colocando um freio em todas as suas possibilidades.

Já outros pais, com mentes mais abertas, não descartam esses fenômenos e, portanto, não chegam a influenciar negativamente seus filhos em relação às questões tratadas como imaginárias.

Para essas crianças tudo é possível. Tudo faz parte de sua realidade. Em tenra idade, ainda não houve tempo de serem influenciadas pelos adultos, não foram condicionadas sobre o que é ou não é real. Foi-lhes permitido serem elas mesmas, estarem abertas a novas experiências. E, em sua caminhada pela vida, com certeza tornam-se, mais tarde, pessoas criativas e prontas para enfrentarem, com confiança e sabedoria, tudo aquilo que se esconde sob os véus do indecifrável ou se encontre em âmbito do seu inconsciente.