sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Receitas da vovó

Vive dentro de mim a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola. Quitute bem feito .
Panela de barro.Taipa de linha.
Cozinha antiga, toda pretinha
.”

Quando leio os poemas de Cora Coralina lembro-me de minha avó Raquel. Ela era exímia cozinheira. Quituteira de mão cheia. Fazia doces e pães maravilhosos. Achei nas coisas de minha mãe, amarelado pelo tempo, um caderno de receitas escritas por minha avó, com uma caligrafia fina e caprichada: bolinhos delicados, bolo de nozes, pudim de laranja, queijadinhas, merengues em calda, bacalhau com leite, empadinhas, entre outras delícias. São receitas provadas e aprovadas por aqueles que tiveram o privilégio de saboreá-las. Guardei como uma relíquia. Ainda não fiz nenhuma das receitas. Não me senti à altura. Mas o caderno está lá, em lugar de destaque. Um dia me encorajo...

Minha avó materna morreu aos 89 anos. Era uma mulher alta, gorda e tinha um sorriso aberto, muito bonito. Pele bem clara, cabelos lisos e expressivos olhos castanhos. Casou muito jovem, com 17 anos; teve nove filhos, trinta netos e já perdi a conta de quantos bisnetos e tataranetos. Ficou viúva aos quarenta e poucos anos e, sua vida, até então sem grandes preocupações financeiras, sofreu uma reviravolta. A responsabilidade da família ficou por conta do seu filho Mário que assumiu a educação dos irmãos mais novos e a direção da casa. Para manter e ajudar o filho nas despesas, minha avó fazia doces, pães e bolos para vender. O sucesso era certo e a clientela só aumentava. Aos poucos, meu tio foi-se fortalecendo financeiramente e vó Raquel passou a exibir seus dons de quituteira somente para os mais chegados.

O ponto alto era a comemoração de seu aniversário, dia 24 de junho, dia de São João. À noite, a família toda – filhos, netos e demais parentes - reunia-se para reverenciar a data. Uma enorme fogueira era montada e acesa na rua, em frente à casa. Deliciávamo-nos com os quitutes típicos - a maioria preparados por ela - e com as brincadeiras junto à fogueira. Meus primos mais velhos vestiam-se com trajes caipiras, colocavam uma barriga postiça, pintavam bigodes e cavanhaques e faziam um monte de palhaçadas para a criançada.

Uma vez ao ano, junto com minha tia, vó Raquel passava uma temporada no Rio de Janeiro, visitando os dois filhos que lá moravam. Gostavam de viajar de navio. Quando chegavam, íamos buscá-las no cais do Porto e era aquela festa com os presentes que traziam. Uma vez, ela trouxe para mim e para a minha irmã duas bonecas de louça. As bonecas, últimas novidades em matéria de brinquedos, nos encantaram, com seus cabelos cacheados, vestidos de organdi, sapatos e bolsas. De tanto pentearmos os cabelos das bonecas, logo, coitadas, ficaram carecas.

Já mais idosa, não se dedicava mais à cozinha. Mas quando a visitávamos, íamos direto para o seu quarto, onde escondia, especialmente para nós, balas e biscoitos delicadamente acomodados em latas coloridas, os quais saboreávamos jogando conversa fora.

Minha avó nunca teve doença grave. Tinha boa saúde. Nos últimos anos é que as pernas já não tinham a mesma energia, andava com dificuldade. Da minha festa de 15 anos ela não pode participar e nem preparar os quitutes. Mas a festa contou indiretamente com sua presença, pois minha mãe se encarregou de preparar com todo o esmero as suas receitas de doces e salgados. No dia seguinte, meu pai foi buscá-la de carro para almoçar conosco. Minha mãe fez com que eu vestisse o vestido da festa, chamou o fotógrafo e minha vó e eu tiramos uma foto para lembrança.

Hoje em dia quando estou na cozinha, preparando o alimento para minha família, reinventando sabores e cores, sentindo o cheiro se espalhar pela casa, penso em minha avó quituteira. Ainda sinto em minha boca o gosto dos papos de anjo, dos quindins, das rapadurinhas de leite, dos pães quentinhos, dos bem-casados, misturados com o seu carinho...

Um pouco de melancolia teima em ficar no ar, quando penso que esses prazeres se perderam no tempo com o corre-corre da vida moderna, que leva as pessoas aos supermercados, aos fast foods, aos self services. No entanto ainda prefiro manter os hábitos culinários que minha avó me inspirou, ao tempo em que preparar uma saborosa receita pertence ao mesmo ritual de quem faz poesia, sem pressa, sem se deixar dominar pelas horas, usando os mesmos ingredientes para agradar não só estômagos, mas para encher a alma de gestos completos de mulheres que experimentam a vida em todos os seus sabores, assim como fazia a minha avó.

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