domingo, 5 de setembro de 2010

Mosquito-pito

Quem sou não pode ser dissociado de quem fui. Tudo pertence a uma evolução. O passado deixa suas marcas através de seus ícones, que sintetizam comportamentos, expressões, sentimentos. Uma peça de teatro, uma tela de um artista visionário, uma música ou um filme despertam em nós recordações, avivam experiências, enaltecem marcas deixadas através do tempo. Mesmo passadas algumas décadas, o filme Mon Uncle (Meu Tio - 1958) ainda é motivo de discussões entre os amantes da arte cinematográfica. Para mim é uma fonte de emoções vividas naquela época.

Quem assistiu essa comédia de humor mordaz e inteligente de Jacques Tati sabe que ela retrata muito bem, entre outros aspectos, as relações familiares e o afeto entre o personagem principal, sr. Hulot e seu sobrinho Gérard. Os dois vivem uma série de peripécias que ridicularizam as relações em tempos derivados da tecnologia emergente. O tio conquista o sobrinho mostrando as coisas simples da vida.

Assim como na ficção, também na vida real a relação entre tios e sobrinhos deixa influências e sentimentos transmitidos que vão dar a cada nova geração as marcas que perduram em suas convivências individuais e sociais. Eu tenho as minhas recordações de infância e permito-me associá-las a esse filme visto quando criança. Foi assim que, na construção de meus afetos, tive a influência benfazeja de meu tio Zeca e seu jeito de encarar a vida através de seu lado jocoso.

Mosquito pito do boni bonito” Era assim que meu tio cantava, chamando a minha irmã do meio. Dizia ele que era porque ela não parava quieta, estava sempre se movimentando, parecia um “mosquito elétrico”. Não sei de onde ele tirava esses trocadilhos, só sei que nos divertíamos ao ouvi-lo, por seu jeito simpático e afável de tratar suas sobrinhas.

Irmão mais velho de meu pai, era militar, mas certamente não tinha a sisudez dos homens das armas. Para nós, crianças era simplesmente o tio Zeca.

O que mais me chamava a atenção em meu tio era a sua perspicácia. Fazia piadas com as situações mais simples que aconteciam. E nos fazia morrer de rir. Ele cantava e fazia letras de música, retratando, de forma engraçada, as situações do momento. Foi esse mesmo jeito desprendido que o levou a também chamar minha irmã de “Pessoa”.

É que, por volta dos seis anos de idade, ela escrevera uma carta a nossos tios e primos, que moravam em outra cidade, relatando uma situação vivenciada. Na carta, usara a palavra “pessoa” uma infinidade de vezes. Foi o que bastou para ele começar a chamá-la por esse novo nome. Mas ela não se incomodava com isso. A impressão que eu tinha era de que ela até gostava de estar em evidência, o que, de certa forma, me dava uma pontinha de inveja. Talvez isso, mais tarde, tenha nos ajudado a cuidar da redação, não repetindo as palavras, procurando sempre expandir o vocabulário. Foi despertando em nós um sentido mais respeitoso para o uso da língua portuguesa.

Através desse lado despretencioso também aprendemos a ser afetivamente consideradas por esse meu tio que ousava brincar com as palavras. Construímos uma relação inquebrantável, parte de uma herança familiar que, antes de tudo, envolve a definição de sentimentos (de segurança ou de insegurança, de dúvida ou de confiança em si, de indignidade ou de orgulho, de modéstia ou de arrogância, de privação ou de domínio). Ele contribuiu para dosar essa dicotomia.

Quando nos visitava, costumava passear, à tarde, na Rua da Praia, a Rua dos Andradas, a mais movimentada e famosa da capital gaúcha. Ao sair de casa ele anunciava: “Eu vou ao povo!”. E lá ia ele, todo sorridente, pegar o bonde. À noite, antes de dormir, costumava ir até o quarto para dar-nos a bênção. Ficava parado na soleira da porta e fazia o gesto característico, com o braço levantado, apontando os dedos anular e indicador para cima. Minhas irmãs e eu cobríamos a cabeça com o lençol fingindo que já estávamos dormindo. E ríamos baixinho, sentindo-nos seguras. Assim ficava o vestígio da presença divina no silêncio da noite.

Meu tio morava com sua família numa pequena cidade, localizada na divisa entre os estados de Santa Catarina e Paraná. E, já na adolescência, quando chegavam as férias, eu mal podia esperar para visitá-los e aproveitar a oportunidade para estreitar ainda mais os laços familiares. Lá, freqüentava, com minha prima, os animados bailes promovidos pelo clube da cidade, e o cinema cujo gerente era o irmão de minha tia. Assim podíamos assistir a todos os filmes de sucesso que eram exibidos. E mais de uma vez. Acho que foi daí que comecei a apreciar com mais atenção a sétima arte.

Um pouco menos que irmãos, mas muito mais que amigos: os primos. E com eles, os tios, os avós. Todos juntos formam nossa "grande" família”, na qual nos encontramos inseridos e com a qual compartilhamos histórias comuns, formando as tradições e a cultura familiar especial. E, neste contexto, tio Zeca representa, assim como no filme Mon Uncle, tudo o que se pode colocar em evidência nas relações entre tios e sobrinhos, a partir da construção de uma vida simples e afetiva compartilhada.