segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Adeus, Olímpico





"Até a pé nós iremos; para o que der e vier; mas o certo é que nós estaremos com o Grêmio, onde o Grêmio estiver".

O refrão deste hino tricolor gaúcho, composto pelo grande e sempre lembrado Lupicínio Rodrigues, traduz muito bem o sentimento que move aqueles que amam e torcem pelo Grêmio Football Portoalegrense, nos quais me incluo.

Tradicional ponto de encontro desta enorme e fiel torcida, o Monumental Estádio Olímpico sempre foi palco de grandes vitórias e cenário de expressão maior do orgulho que nós gremistas sempre sentimos pelo nosso tricolor. No domigo, dia 2 de dezembro deste ano de 2012, essa fiel torcida deu adeus a seu imponente Estádio, situada no bairro Azenha, em Porto Alegre. 

Eles foram chegando, cantando palavras de ordem,  carregando bandeiras, vestindo a camisa do time, um verdadeiro mar azul. Homens, mulheres, crianças de todas as idades, raças,  cores, classes sociais, crenças, unidos por uma só paixão:  o Grêmio Football Portoalegrense. Uma tarde de despedida. A ameaça que pairou no ar durante vários meses, estava bem perto de tornar-se realidade. O Estádio Olímpico, em breve,  vai ser demolido para dar lugar a um grande empreendimento imobiliário.

Para marcar  esse adeus, a data escolhida foi a do último jogo do Campeonato Brasileiro de 2012 e o time adversário não poderia ser outro: o rival, Sport Club Internacional. Tudo programado (ou não) para a festa ficar mais apimentada e emocionante. O jogo, como sempre acontece entre os dois, foi recheado de jogadas duras, empurrões, xingamentos, expulsões, pernas esfoladas, narizes sangrando. Uma verdadeira praça de guerra. 

O resultado final da batalha - zero a zero - pouco importava para mim. O que movia os gremistas eram os sentimentos de saudade e de agradecimento por tantas conquistas, tantas alegrias vividas naquele solo sagrado que, como parte de todas as trajetórias de uma vida, foi palco também de algumas decepções e tristezas. Nada que ofuscasse o amor depositado por todos nós, gremistas.

Enquanto assistia tudo pela televisão me perguntava: quantos jogadores, técnicos, preparadores físicos, massagistas  e outros tantos profissionais passaram por seus gramados? Quantos contribuíam pelos inúmeros títulos conquistados? Foram entre muitos, dois Campeonatos Brasileiros, duas Libertadores, quatro Taças do Brasil e um Campeonato Mundial. São pouquíssimos os clubes brasileiros que têm este currículo para ostentar.

E os torcedores, anônimos que tornaram vivas suas arquibancadas, cadeiras sociais e geral? Quantos empurraram o time para as inúmeras vitórias e títulos alcançados? Quantos sofreram juntos nas derrotas? Nunca saberemos. Seus gritos, canções, choros, risadas e aplausos vão ficar ecoando ainda por muito tempo em cada coração gremista.

O novo estádio, a Arena Gremista, foi apresentado aos torcedores e esportistas do mundo inteiro nesse fim de semana, dia 8 de dezembro, com um jogo internacional: Grêmio e Hamburgo,  da Alemanha,  com a vitória do tricolor gaúcho por 2 a 1.

Estádio moderno, exuberante, comparável  aos mais destacados centros esportivos do mundo, a Arena foi inaugurada com a presença de mais de 60 mil torcedores. Atletas consagrados que vestiram a camisa azul, preta e branca, em tempos passados, foram homenageados. 

Os gremistas já vislumbram novas emoções e conquistas na nova casa. Porém as lembranças  do velho Olímpico jamais serão apagadas de nossos corações e mentes. 

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Maravilha da natureza

"Então o Homem que tinha pleno poder sobre o mundo dos seres mortais e animais sem razão, lançou-se através da armadura das esferas e cortando seu envoltório fez mostrar à Natureza de baixo a bela forma de Deus. Quando ela o viu, ele que possuía em si  a beleza insuperável  e toda a energia, a Natureza  sorriu de amor, pois tinha visto os traços  desta forma maravilhosamente  bela do Homem se refletir na água e sua sombra sobre a terra.  Tendo ele percebido  esta forma semelhante  a ele presente na Natureza, refletida na água, amou-a e quis ali habitar. Assim que o quis , foi feito e foi habitar a forma sem razão. Então, a Natureza  tendo recebido nela seu amado, enlaçou-o totalmente  e eles se uniram, pois queimavam de amor."  - Hermes Trismegistros


Vista do lado brasileiro - foto de Jucimar Felisberto
 Há muito tempo eu desejava conhecer as Cataratas do Iguaçu, uma das sete maravilhas do mundo moderno. Recentemente, a oportunidade surgiu e lá fomos nós, meu marido e eu. cheios de curiosidade, voando  para a hospitaleira cidade de Foz do Iguaçu.

Entre os diversos passeios que realizamos na região das três fronteiras (Brasil, Paraguai e Argentina), o mais surpreendente , por certo, foi a visita às cataratas, tanto do lado brasileiro como do argentino.

Quando chegamos ao Parque Nacional do Iguaçu, antes de avistarmos as quedas dágua, o barulho das cachoeiras  nos emocionou e já podíamos adivinhar o que nos esperava: uma verdadeira obra-prima de Deus.

Tanto durante o passeio pelo parque brasileiro como pelo parque argentino, é indescritível a sensação de paz e  integração perfeita com a natureza. Enquanto observávamos a dança das águas, ora ostentando toda a sua força, ora correndo suavemente por entre as pedras, quase não sentíamos nossa respiração. Em determinados momentos, as águas uniam-se a nós, nos encharcando por completo, derramando toda a sua exuberante energia sobre nossos corpos e nossas almas, em uma perfeita comunhão.


Garganta do Diabo -Vista pelo lado argentino.

Cataratas do Iguaçu vistas pelo lado argentino.


quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Retrato de família



"Tão bela flor, quero-mana,
tão bela flor, é verdade,
do que é ruim ninguém  se lembra,
do que é bom se tem saudade.
Minha terra, minha terra,
Ela lá e eu aqui. Ai!
Por muito bem que me tratem.
                  Não me esqueço onde eu nasci. Ai!..." 
 - Quero-mana, dança do folclore do Rio Grande do Sul

Em meus álbuns de família há uma foto que, de vez em quando, fico observando para fazer novas leituras sobre aqueles que me antecederam em minha família: uma foto em preto e branco, amarelada pelo tempo, estampada, em papel grosso, ainda bem conservado. A grafia caprichada de meu pai, na parte de trás da foto, identificava: Fazenda da Armada -1932
 
Como eu havia prometido, há algum tempo, pintar um quadro para homenagear e presentear meu irmão, logo pensei: será sobre essa foto, uma imagem bem significativa, que nos remete às nossas raízes gauchas.

Ela mostra a fachada da sede da propriedade, durante uma festa, cujos presentes perfilaram-se para sair no retrato, uma situação comum entre os fazendeiros da região. Seria um casamento, um aniversário, ou, simplesmente, uma reunião de amigos e vizinhos? Não importa. O mais importante é o que representa e guarda sobre meus ancestrais. 

No interior do Rio Grande do Sul, naquela época, era comum a realização de festas para reunir familiares e vizinhos, como forma de amenizar um pouco a solidão dos que viviam praticamente isolados em suas terras. Em geral, os vizinhos moravam a léguas de distância e encontravam-se somente em ocasiões especiais para colocarem em dia os "causos" que viveram ou presenciaram ou, ainda, prestarem algum tipo de solidariedade. Para esses eventos, considerados ocasiões especiais, as mulheres colocavam-se dentro de seus melhores vestidos, perfumavam-se e penteavam seus cabelos armados por uma travessa ou enfeitados com flores artificiais. Os homens compareciam muito bem trajados, muitos deles pilchados (indumentária gaúcha) e não dispensavam o uso do chapéu.

Nessas festas, a comida principal seguia a tradição, até hoje ainda conservada, o churrasco. Mas muitas vezes não podiam faltar outros quitutes da culinária gaúcha, como o quibebe de abóbora, o pão de milho, o feijão mexido, o sarrabulho, a morcilha e a lingüiça. Com a carne bovina também era e é feito ensopado de aipim, cozido com pirão, guisadinho com abóbora ou batata ou ainda o famoso arroz de carreteiro. E as sobremesas? Ambrosia, doce de abóbora, em calda, doce de figo, pessegada. Tudo preparado em grandes tachos de cobre. 

Tudo isso acontecia tendo como o palco aquela imponente construção do século XIX. Assim como um livro, uma construção revela, através de suas pedras, madeiras e demais materiais, a própria história de quem abrigou e a sucessão de experiências humanas através dos ambientes construídos e alterados ao longo do tempo.

A partir de então a construção permaneceu com suas características originais inalteradas, fruto de influências arquitetônicas coloniais, a partir de um desenho retangular, de linhas assimétricas, que marca a influência luso-brasileira. O telhado daquele casarão ainda era feito com a utilização de telhas construídas artesanalmente, cuja curvatura era moldada pela circunferência das pernas de seus artesãos. Daí surgiu a expressão “nas cochas”.

Enquanto minha família mantinha um círculo de relacionamento estritamente limitado aos seus domínios, muita coisa começou a acontecer no contexto onde ela estava inserida. Levados pelo incremento desenvolvimentista da Era Vargas, a partir da década de 30, os setores agrícolas começaram a ganhar alento, com notáveis repercussões econômicas, políticas e sociais. 

A partir da década de 30, a tração animal passou a ser substituída pela máquina, surgindo, no Rio Grande do Sul, a primeira colheita mecanizada de arroz no Brasil, abrindo uma economia de escala que ocasionou o fim do feudo e o nascimento da agroindústria.

O trabalhador rural viu o seu esforço ser racionalizado e a produtividade aumentar, assim como a melhoria nas condições de trabalho, mas, também, começou a ser incrementado o êxito rural cujo principal efeito foi o fracionamento ou a desagregação familiar, fatores que, de certa forma, também explicam o que passou a acontecer com a Fazenda da Armada e o papel que desempenhava na vida familiar.

A construção das novas sedes de fazendas gaúchas também passou a sofrer inspiração de uma nova arquitetura, que veio mais tarde influenciar a construção de Brasília, baseada nas influências de Courbusier e no emergente trabalho de Lúcio Costa. Eram as duas faces de uma mesma moeda: o novo e o velho se alternando.

Toda essa dinâmica pode explicar a migração de meus antecessores para centros maiores e, desses, para a Capital do Estado, Porto Alegre. O patrimônio foi partido e repartido. E hoje é lembrado somente através de fotos como essa. Não tive mais informações do que aconteceu com a Fazenda da Armada após tanto tempo.

Apesar de se encontrar em razoável estado de conservação, a foto, em questão, foi elaborada dentro de um rudimentar equipamento fotográfico. Por questões de luminosidade e de imprecisão das lentes, a fotografia deixou de mostrar traços e feições dos personagens, evidenciando apenas contornos e perfis. Por isso aceitei o desafio de inserir cores nos tons originais da foto, cinca claro e cinza escuro, estilizando a figura humana, sem, contudo, deixar de elevar o espírito que marca aquela época, onde muitos dos personagens, na foto original, são meus antepassados.

Para retratar a Fazenda da Armada, uma homenagem que presto ao pai de minha avó paterna e seus agregados, utilizei tinta acrílica nas cores e tons marrom e bege, para dar idéia de antiguidade. Reproduzi somente as silhuetas dos personagens, para evidenciar o espírito humano materializado.

A tudo isso é acrescido um fato: além de constar em meus álbuns, a foto também ganha nova vida, a partir de um quadro que nada mais é do que o meu tributo a todos aqueles que tornaram possível esse momento de criação e, espero, também de exaltação, a partir do momento que meu irmão fixar meu trabalho em sua casa, para dar cor aos momentos vividos em 1932 e lembrar que, na construção de sua identidade, a vida de meu irmão já estava presente na sucessão de acontecimentos ocorridos desde aquela época, eternizados neste instantâneo, dentro de um tempo e de um espaço em constante transformação.




segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Obrigatoriedade dos cursos de jornalismo

O diploma  faz um bom jornalista? Penso que não. Apenas  um diploma  não transforma alguém em  um bom médico, advogado, engenheiro, dentista  ou professor. Para ser um bom profissional, em qualquer área, acredito que seja  necessário, junto com o estudo nos bancos de uma universidade, ter  talento, dedicação, ética,  motivação e muito "suor".

Por ser uma profissão que gera conceitos, opinões e interfere, muitas vezes, nos destinos poliítico e econômico de um país e de sua gente, o jornalismo sempre causou polêmica. É o que  está acontecendo com a recente aprovação, pelo Senado, da obrigatoriedade de o profissional jornalista ter diploma para exercer essa função.

Em 2009, o Supremo Tribunal Federal havia decidido por revogar a obrigatoriedade acadêmica para o exercício da profissão. Um verdadeiro retrocesso! Na ocasião, um dos ministros chegou a comparar a profissão de jornalista com a de cozinheiro. Disse que, para preparar uma refeição ou uma notícia, não seria necessário passar por uma faculdade. É de chorar! Como pode comparar - não desmerecendo a profissão de cozinheiro, que é muito digna, sendo o seu exercício profissional visto dentro de uma outra lógica -  com aqueles que vão influenciar comportamentos, opiniões e, muitas vezes, mudanças na vida de milhares de pessoas?

Os que são contra a exigência do diploma para o exercício do jornalismo alegam que a obrigatoriedade - originária  de um decreto de 1969 - assinado durante o regime militar - foi aprovada com o objetivo de cercear  a livre expressão. Para mim essa é uma desculpa, no mímimo, de má fé.

Em um tempo em que as empresas procuram contratar profissionais cada vez mais qualificados, certas empresas jornalísticas correm na contramão, defendendo, em seus editoriais, a não obrigatoriedade do diploma para preencher seus quadros de profissionais nas áreas pertinentes. Visam, com certeza, continuarem a pagar baixos salários e a serem os próprios censores, quando o apurado e o escrito não condizem com a sua linha de pensamento, privando, assim,  a sociedade de conhecer o real detalhamento dos fatos.

Os simpatizantes dessa tese defendem  que, para escrever uma boa história, não é necessário ter o diploma de jornalista. Revoltante! É claro que para contar uma boa história não é imprescindível o diploma em questão. Haja visto a quantidade de bons escritores, cronistas, poetas, verdadeiros mestres da literatura que nos brindam com seus trabalhos.

Nos tempos atuais, com o desenvolvimento  da internet, todos, independente de sua profissão podem manisfestar  suas opiniões e seus  conhecimentos acadêmicos  a qualquer tempo. Para isso, existem também espaços em jornais e revistas, onde qualquer cidadão, independente de sua profissão, pode manifestar-se.  Da mesma forma, há  as revistas especializadas, criadas especialmente para que os profissionais qualificados possam discorrer suas teses e exercitar seu talento de escritor.

Porém, saber escrever de forma clara, objetiva e concisa, levando o leitor  a ter a perfeita idéia do assunto que está sendo tratado, colocar um título ou uma foto que realmente chame a atenção e esclareça o leitor, ou encaminhar uma entrevista  de forma ética e esclarecedora exigem técnica. Isso é para o profissional, não para o amador.

O principal argumento, entre tantos, que posso  levantar  para a defesa da exigência do diploma para o exercício profissonal do jornalista  é que a sociedade precisa e tem direito à informação de qualidade técnica e ética. A sociedade merece ter acesso a um jornalismo  fiel à realidade dos fatos, fiscalizador dos poderes públicos e com excelência na  prestação de serviços. Um jornalismo de qualidade.

A competitividade voraz que enfrentamos,  no mundo atual,  e a rapidez com que as informações são disseminadas colocam o jornalismo como uma das profissões mais desafiadoras e apaixonantes do momento. Para vencer com sucesso os desafios dessa trajetória é primordial , pois, investir em muito estudo. Não é para qualquer um sem diploma.



domingo, 19 de agosto de 2012

Sem medo de ser feliz

"Contar é muito dificultoso, não pelos anos que já se passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas - de fazer balancê, de se remexerem dos lugares"..." -  Guimarães Rosa

As   histórias de pessoas chamadas, pejorativamente, de avoadas, distraídas ou desligadas são, geralmente, engraçadas.  Eu que, na família, levo essa fama (será bullying?), acho que tenho todo o direito de rir  dos que assim também procedem.

Sobre esse assunto,  me chamou a atenção uma crônica que li, nesta semana, onde o autor  se incluía no "clube dos avoados" e contava vários casos que aconteceram com ele ou com  seus amigos. Ri muito quando ele conta que uma amiga chegou em uma festa, circulou por todo o ambiente, distribuiu beijos e abraços com bobs na franja. Só descobriu o "mico" quando passou, depois de algum tempo,  frente a um espelho.

Esse e outros fatos narrados pelo autor provocaram em mim boas risadas e  levaram-me de volta ao passado. Lembrei-me então, do dia em  que tudo isso começou em minha vida. Bem, assim penso eu.

Foi durante um passeio de carro com a família, por uma das tantas estradas do interior.  A paisagem, belíssima,  formada por verdes pastagens, saltava aos olhos, quando, em um determinado trecho, alguém gritou: "Olhem os carneirinhos!".  Meu pai diminuiu a velocidade do carro para que as crianças pudessem apreciar os belos animais que tranquilamente pastavam. Eu, no alto de meus seis ou sete anos, embriagada pelo vento, que acariciava meu rosto e levava meus pensamentos para mundos encantados, não manifestei externamente nenhuma reação. Passados alguns quilômetros - dizem - perguntei: "onde, os carneirinhos?".

Certa vez,  meu marido telefonou para meu emprego avisando-me que havia deixado o carro em frente ao prédio onde eu trabalhava para eu poder voltar para casa sem ter de pegar ônibus cheio. Contente com o gesto afetuoso e dedicado, agradeci. No final do expediente, como de costume, atravessei a rua e, passando pelo carro ("engraçado, este carro é bem parecido com o meu!"), dirigi-me ao ponto de ônibus. Ao chegar em casa, meu marido perguntou:"onde está o carro?". Respondi:"Que carro?"

Dizem que isso acontece com as pessoas que tem os pensamentos voltados para grandes projetos, mas esquece de carregar suas baterias para os detalhes cotidianos. Não é muita pretensão?

Minhas irmãs costumam rir muito das minhas distrações, mas também não fogem à regra.  Durante um dos verões que passava na praia, uma delas enfeitou-se toda para fazer sua caminhada habiltual. Andou por todas as ruas do balneário, olhou vitrines, encontrou pessoas conhecidas e, quando chegou em casa, deu-se conta de que havia saído com um tênis de cor e formato diferentes em cada pé. Nada como lançar moda!

A outra, em um passeio ao zoológico, ao ver dois cangurus fazendo a dança do acasalamento, exclamou surpresa em alto e bom som:" Que amor, como brincam esses bichinhos!" Não se espante, caro leitor. Ela já era adulta quando isso aconteceu!

Meu marido, que prima pelo bom senso, também já foi vítima, várias vezes, da síndrome do "desligamento". Certa vez, em uma viagem, vindo de Brasília, de carro, parou em Uberaba para almoçar. Ao retornar ao carro para seguir viagem, não conseguia ligá-lo de maneira nenhuma.  Chamou um mecânico, foram para a oficina, fizeram uma visoria completa e nada. Depois de muitas horas de tentativas, ele lembrou que, ao parar para o almoço, havia desligado o segredo que acioava o motor de partida.

Outro fato que nos mostra em que grau pode chegar a distração foi o ocorrido, certa vez, com  uma pessoa que trabalhava em nossa casa. Ela gostava muito de ouvir música em seu rádio portátil e fazia todo o trabalhalho levando o tal rádio por onde ía. Uma ocasião, ela estava  limpando o banheiro e, qual foi a minha surpresa, ao ver que ela sacudia frenéticamente o rádio dentro da privada, enquanto segurava firmemente o vidro de desinfetante  junto ao ouvido.

Cada vez que, sozinha ou junto a familiares, relembro e remexo  nesses casos divirto-me por demais. É tão bom quando exercitamos essa capacidade de rirmos de nós mesmos., sem pudor ou medo de chacotas. São situações que passam e  não deixam marcas dolorosas. Pelo contrário, quando as recordamos, provocam um balancê na alma.


segunda-feira, 21 de maio de 2012

Trapalhadas

Meu pai era um sujeito calado, introspectivo. Mas isso não o impedia de, em seus momentos mais descontraídos, ser uma pessoa bem humorada e perspicaz.. Apreciava uma boa leitura e incentivava os filhos a desenvolverem também esse hábito. Tomar chimarrão e ir ao estadio para assistir as partidas do Grêmio Futbool Porto-alegrense -  time pelo qual era torcedor fanático - eram os seus  hábitos preferidos e imprescindíveis. Gostava de estar com a família e com ela realizar pequenos  passeios  ou  viagens. Esses momentos eram muito esperados e apreciados por nós, seus filhos. Mas, muitas vezes,  essas ocasiões resultaram em momentos memoráveis.

No início dos anos sessenta era rara a família que possuía um automóvel.  As ruas não eram congestionadas e o trânsito não era  insuportável como hoje, porque poucos podiam ter acesso ao crediário e às facilidades de financiamento para aquisição de um veículo. Raramente se utilizava os serviços de um táxi. O meio de transporte coletivo mais usado era o bonde.

Mas após algumas economias, meu pai finalmente realizava o seu sonho de ingressar no seleto grupo de proprietários de um automóvel: um Hudson, verde, com bancos de couro, hidramático. Um carrão, para os padrões da época. Como ele tinha uma estatura baixa e era bem magrinho, quase sumia dentro do carro.

Em uma bela noite de verão, para experimentar a nova aquisição, reuniu toda a família, e depois de todos sentados em seus devidos lugares, saiu a passear pela cidade.Com janelas abertas, o vento batia em nosso rosto, enquanto, encantados, olhávamos as luzes da cidade. Quando já estávamos perto de casa, meu pai, no auge do seu contentamento, exclamou: "Que belo carro, como desliza!"

Foi ele terminar de dizer essas palavras, ouvimos um estrondo e o possante  parou. Saímos todos de dentro do carro, assustados, sem saber o que estava acontecendo. Tal foi a surpresa quando percebemos que  ele tinha subido em cima do canteiro central da avenida e os dois pneus do lado esquerdo estavam completamente arrebentados. Frustrados, voltamos para casa de bonde, com minha mãe, enquanto ele ficou esperando  o guincho chegar .

Em outra ocasião, estávamos indo para a praia, também no Hudson,  e, na estrada, minha mãe resolveu comprar melancia. Ao longo da estrada, como é ainda comum nos dias de hoje, havia muitas barraquinhas que vendiam frutas da época e produtos artesanais da região. Ao avistarmos uma barraquinha de melancia, meu pai parou o carro e descemos todos. Minha mãe escolheu uma melancia bem grande e apetitosa, meu pai pagou, entramos todos novamente no carro e nos preparamos para seguir viagem.

Meu pai manobrou o carro para retornar à estrada, deu uma ré e ouvimos um estrondo e uma gritaria. Descemos todos novamente e qual a nossa surpresa: o carro se chocara com a barraca, derrubando várias melancias que se esborracharam no chão. O homem urrava de raiva e exigia que meu pai  o ressarcisse do prejuízo. Meu pai ofereceu-lhe uma quantia que achava justa, mas o homem estava tão brabo que não atinava a entrar em um acordo.

Depois de muito tentar, meu pai desistiu e colocou o dinheiro em cima da banca e arrancou o carro, cantando os pneus. Já irritado com o impasse criado pelo comerciante "mandou-o à merda", enquanto o Hudson se distanciava e nós, olhando para trás, ainda víamos o homem das melancias blasfemar  e gesticular. Nós, crianças, ficamos apavoradas e levamos  o susto conosco por vários quilômetros, principalmente porque esse não era seu costume habitual.

Assim em muitas ocasiões aconteciam fatos pitorescos com nossa família e, hoje em dia, quando nos reunimos, costumamos comentar  essas proezas  do passado que nos trazem muita saudade dos bons momentos vividos.


domingo, 8 de abril de 2012

Pra não dizer que não falei...

          No começo dos anos 60, os sonhos de meus pais eram embalados pelas músicas românticas de Silvio Caldas, Orlando Silva, Dalva de Oliveira e, também, interpretes latinoamericanos, como Carlos Gardel, Juan D'Arienzo, Athaulpa Yupangi, Marcedes Sosa e tantos outros.
          Essas músicas eram melodiosas e letras exaltavam o coração, a paixão e o estar enamorado e todas as suas conquências. Com a chegada de nossa geração, queríamos mudar tudo isso e encontrar uma forma de expressão que, através da música, quebrasse paradigmas e representasse nosso mais irrequieto espírito de renovação.
          No início dos anos 60, foram iniciadas as bases para mundialização dos padrões e comportamentos. Surgiram nas rádios as músicas de um conjunto barulhento, cujos integrantes aboliram o cabelo penteado com a brilhantina ( década de 50) para deixarem-no formar volume desalinhado e disforme. Eram os besouros, ou Beatles, que deixaram meus pais de cabelo em pé, estarrecidos com aquela gritaria e música estridente. Muitas vezes me perguntaram: "isso é música"?
          E eu seguia me identificando com aquela novidade que veio a reformular padrões e comportamentos no mundo inteiro, a ponto de seu principal integrante dizer que " eram mais populares que Jesus Cristo".
          Agora, já na idade que tinham meus pais me coloco em seus lugares e repito seu gesto questionador, ao me deparar com as musicas hoje produzidas no Brasil e também me pergunto, estarrecida: " isso é música "?
          Sucessos midiáticos apresentam letras que se sustentam  na repetição enfadonha de um refrão e pouca musicalidade. Mas ficam grudadas na mente:  Eu quero tchan, eu quero tchun, eu quero tchan, tchun, tchun, tchun.... 
          O contraste de gostos e preferências sempre existiu entre as gerações, cabendo aos mais velhos o papel de se surpreender e questionar o novo que surge. Fico com o sentimento dúbio do contraste: surpresa com a má qualidade de certos sucessos atuais e saudosa das músicas de meu tempo de adolescência e início da vida adulta.
          Nem só de barulho e contestação viveu a minha geração.
          Ah, que saudades das letras bonitas, romanticas que expressam sentimentos, posicionamentos políticos ou descrevem as  belezas da natureza! Letras e músicas que nos levam a sonhar ou a chorar, nos fazem ficar com a pele arrepiada, literalmente.
          No final dos anos 60 e início dos anos 70, as músicas dos festivais da canção sacudiram milhares de espectadores, que lotavam ginásios de esportes para torcer por intérpretes e canções participantes. Lembro-me quando a música "Sabiá", de Tom Jobim e Chico Buarque, disputou o primeiro lugar com a música "Pra não dizer que não falei de flores", de Geraldo Vandré. A polêmica dividiu a platéia, críticos e até mesmo representantes de veículos de comunicação de massa na disputa pelo prêmio máximo da categoria. 
          Ambas  as músicas fazem parte de minha história e hoje ainda recordo os acontecimentos daquela época: Os gritos de protestos da platéia ainda ecoam em meus ouvidos contra os versos " Vou voltar, sei que ainda vou voltar para o meu lugar... Foi lá que eu ouvi cantar uma sabiá..".  e a favor de  "caminhando e cantando e seguindo a canção, somos todos iguais, braços dados ou não". Realmente, foram anos marcantes.
          E, mesmo quando cantadas em uma linguagem popular, mesmo arranhando no portugues correto, as músicas não perdiam a poesia: " O Arnesto mi convidô pro samba, ele mora no Braz... Nós fumu e não encontremu ninguém... Nós fiquemo cum uma baita de uma raiva, da otra vez nós num vai mais. Vivi a minha infância ouvindo meu pai cantar essa música de Adoniran Barbosa! 
          Quem nunca sentiu, por exemplo, uma dor de cotovelo imortalizada na música Nervos de Aço de Lupicínio Rodrigues: "Você sabe o que é ter um amor, meu senhor, ter loucura por uma mulher e depois, encontrar esse amor , meu senhor, nos braços de um tipo qualquer..."
          De lá para cá, até a última década, o romantismo sempre expressou emoções elevadas, o afeto e a consideração por pessoas amadas. Mas jamais foram cantadas, como agora, com tanta frieza, como vejo nos recentes músicas chiclete e besteirol, que grudam na cabeça.
          Hoje em dia, as gravadoras, pensando em atingir as massas, lançam músicas cujas letras são recheadas de duplo sentido ou apresentam refrão repetitivo, repletos de termos chulos. Não sou saudosista, mas dentro do possível, me considero antenada para as novidades que surgem. Não dá pra aguentar ouvir toda a hora alguém cantando: "Ai se eu te pego, ai se eu te pego! Delicia, delícia! " Um refrão criado em tom de brincadeira, sem nenhuma pretenção, por um grupo de meninas em férias e que, de repente, gravado por um cantor com carisma, virou hit internacional. 
          Recentemente, faleceu um compositor e cantor considerado pelos críticos como brega, mas que arrastava multidões. Tinha uma coleção de calcinhas que as fãs jogavam no palco em sua homenagem. Nem por isso suas músicas perderam o tom romântico de exaltar o amor. Mesmo sem gostar, quem nunca parou  por um instante para ouvir Wando ou cantarolar o refrão: "Eu quero me enrolar nos seus cabelos, abraçar seu corpo inteiro, viver de amor de amor me perder"?
          Preferia a sensibilidade de Gonzaguinha, que me tocou com esta pérola: "primeiro você me azucrina, me deixa na boca um gosto amargo de fel, depois vem chorando desculpas, querendo ganhar um bocado de mel..." Meu marido costuma dizer, quando ouve esta música, que essa ele me dedica. Será?
          Para contrapor essa dor do distanciamento, lembro-me de uma canção de Cazuza: "Quando a gente conversa, contando casos, besteiras,  tanta coisa em comum, deixando escapar segredos, eu não sei que hora dizer, me dá medo (que medo), é que eu preciso dizer que te amo!"
         Várias canções tem a capacidade de ajudar-nos a ver a vida com mais otimismo, servem para nos incentivar quando estamos cansados,quando as coisas não estão dando certo. Renato Russo imortalizou os versos, entre outros,  "Mas é claro que o sol vai voltar amanhã. Mais uma vez eu sei. escuridão já vi pior, de endoidecer gente sã. Espera que o sol já vem. Quem acredita sempre alcança."
          Com letra e música alegre, Os Tribalistas nos encantam e nos fazem retorrnar à infância. "Teus olhos, meu clarão, me guiam dentro da escuridão, teus passos me abrem o caminho, eu sigo e nunca me sinto só! Você é assim, um sonho pra mim..."
          Mesmo que haja contrastes entre gerações, carregamos, em nossos gens e em nossas atitudes, as suas marcas herdadas de nossos pais, como  expressa a canção de Belchior , eternizada na voz de Eliz Regina: "Não quero lhe falar meu grande amor. Viver é melhor que sonhar. Por isso meu bem, há perigo na esquina. Minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo o que fizemos, nós ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais."
          Apesar de cantarolarmos os refrões repetitivos de momento, na verdade, gostamos é da boa música. Como diz a canção, ainda somos os mesmos.... Ainda que busquemos a inovação, a transformação, a revolução de costumes e preferências. O grande perigo, que corremos, hoje, é nos tornarmos cativos de uma mídia alienante e dissociada dos sentimentos verdadeiros. As músicas que elevam sentimentos e exaltam o amor não são  como poeira no vento que duram um só instante e se vão. Elas ficam eternizadas, passam de geração em geração. 

sexta-feira, 6 de abril de 2012

O Gato, uma pintura!


Pintei o gato. Não um gato qualquer. Mas um gato preguiçoso que gosta de dormir e de afiar as unhas no tapete novo da sala. Um gato que tem um nome - Ramon -  e um apelido - Ronron - para os íntimos. Ou, ainda, Romeu, como teima em chamá-lo, o veterinário que o atende.

Ele se basta. Cuida da própria higiene, sai para passear quando se cansa da rotina da casa ou deseja simplesmente apreciar a paisagem. Quando quer agradar, chega de mansinho, ronronando, e se aconchega perto de nós, pedindo um carinho ou atenção.Quando quer dormir, escolhe o melhor lugar, o mais confortável e ventilado e ali deixa-se ficar nas mais enroscadas posições.


Já dizia Aristóteles que o homem é o único animal político. Não concordo. O gato da minha família também o é, no bom sentido da palavra, é claro. Não gosta de confusão. Quando as coisas saem da rotina, ele sai de mansinho, dá uma volta, desaparece por alguns momentos e esconde-se em algum lugar (preferencialmente dentro do guarda-roupas). Depois de algum tempo,  volta, diplomaticamente, querendo chamar a atenção, enroscando-se em nossas pernas.


No decorrer dos séculos, o homem já adorou os animais como se fossem deuses ou os maltratou como se não sentissem dor, medo ou raiva. Porém, como sentia a necessidade de uma companhia sincera, aprendeu a domesticá-los. Hoje em dia, muitos animais domésticos tem as regalias que muitos seres humanos não tem. Em outros casos, ainda são maltratados ou abandonados à própria sorte. Mas isso é assunto para uma outra crônica.

domingo, 11 de março de 2012

Uma rua qualquer



"Deixe a vida fluir livremente. Veja Deus fazer florescer milhões de flores todos os dias sem forçar os botões". Bhagwan Shree Rajneesh

Todos os dias eu passava pela rua, atrás da rua onde moro, e parava por alguns instantes a admirar a buganvilea toda florida destacando-se dos muros e casas.  Pensava com meus botões;"vou fazer um quadro desta árvore".


Toda vez que passava por ali observava nuances e sombras, cores e detalhes. Caminhava devagar, em horários diferenciados,  olhando, atentamente,  de todos os ângulos, a árvore florida . Até achar o que mais me agradou.


 Munida de coragem, pincéis, tintas e tela, parti para o desafio. Deixei fluir a imaginação e esqueci o medo de errar. 


Enquanto trabalhava nesse quadro, viajei pelo tempo. Voltei cerca de 30 anos, quando meu marido e eu, jovem casal, com três filhos pequenos, vindos de outro estado, chegamos nesta cidade, desconhecida para nós, cheios de planos e esperanças. 


Deste então, sempre neste mesmo bairro e rua, fixamos a nossa morada. Sonhamos,  trabalhamos, conquistamos nosso espaço. Muitas vezes, a saudade dos pagos bateu, mas não nos abateu. Muitas vezes a luta foi árdua. Mas posso, hoje, dizer que tudo o que vivemos não foi em vão. Aprendi, no decorrer desses anos,  que nada é impossível quando seguimos nossa orientação interior, mesmo quando sua direção vem desafiar-nos por ser contrária à nossa lógica corriqueira. 


Assim como ao pintar este quadro, misturei cores, pintei, apaguei, discuti, teimei, repintei até sair esta obra que hoje enfeita a sala da casa de minha filha,  fui construindo,  junto com meu companheiro,  este grande desafio que se chama vida. Quadro e vida vivida refletem as cores da existência: refletem o momento e também fazem parte de uma eternidade, onde o principal ingrediente exigido se chama sensibilidade e seu principal resultado se chama experiência. 

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

As cores da terra


Somos a mestiçagem de um deus que quis mostrar ao universo a nossa cor tisnada,
resistimos à voragem do tempo,
aos apelos do nada...
Olinda Beja, São Tomé e Príncipe, 1946.

Certo dia, cheguei na aula de pintura sem saber o que ia pintar. Conversei com um e com outro procurando saber as novidades da semana. Coloquei meu material sobre a mesa. Bebi um pouco de água,apreciei os trabalhos das colegas. Saboriei um cafezinho quente. Enrolei mais um pouco.

 Parei, quieta, apreciando a bela paisagem do Canal de Camburi, o vai e vem manso das ondas, o azul do céu ,o vôo inquieto dos pássaros que mergulhavam de vez em quando para pescar algo nas águas. E a inspiração teimava em permanecer adormecida. 

Deixei-me prostrar ali, desanimada, quando minha professora veio com uma tela na mão. "Por que não pintas este desenho?" Olhei para o trabalho que alguém já havia iniciado e não senti muito entusiasmo. Queria fazer alguma coisa  minha desde o início. Algo que brotasse de dentro de meu ser. Mas ela insistia para que eu criasse algo em continuação ao que já estava delineado.

Depois de alguns minutos de dúvida, pensei: "por que não?" Afinal, depois de observar mais atentamente a tela, me chamou a atenção o movimento da moça que parecia dançar, equilibrando o vaso de barro no ombro. Por um instante, veio-me à mente um poema de Tagore: "Ó bem amada, toma em tuas mãos a taça e a ânfora e vai passear pelo jardim, espairecer à beira do rio! Previno-te, deves apressar-te. Vai, caminha, corre! Muita vez, de belos corpos de mulheres amadas se fizeram taças. E potes de barro também..."

Foi o que bastou. Decidida, peguei a tela, sentei-me no lugar de costume e ... mãos à obra.Usei as cores do barro, as cores fortes que representam as heranças das mulheres africanas que, resistindo à voragem do tempo, ajudaram a formar nosso país.

Depois disso a tela ficou pronta  sem grandes esfoços. E hoje enfeita a sala de minha casa. É uma das que mais aprecio.




domingo, 1 de janeiro de 2012

Uvas

Quando o narrador ,
com a voz úmida de emoção,
disse de um paraíso todo resplendor,
habitado por homens extraordinários,
varões magnificos e sedutoras huris alucinantes,
sereno respondi:
- Que delícia o sumo da uva!  

Omar Kaiame


No sábado, dia 31 de dezembro, fui à feira livre como de costume. Minha intensão era a  de comprar uvas, para enfeitar a mesa da ceia de Ano Novo. Não somente isso.  Pretendia também seguir a tradição ou a superstição de comer sete uvas e guardar as sementes na carteira, durante o ano todo, para ter abundância.

Percorri toda a feira, atrás de frutas maduras e de aspecto saboroso  e, é lógico, que apresentassem um preço convidativo. Surpresa: ao percorrer diversas bancas, constatei que os preços não variavam e estavam absurdamente altos. Não me contive. Na última parada, perguntei, irônica, ao feirante: "Estas uvas são cultivadas com fios de ouro"? Ele, um pouco constrangido, argumentou que, esse ano, os preços praticados pelos fornecedores haviam crescido 200% em relação aos do ano anterior. E ainda acrescentou que a mercadoria estava escassa, havia muita procura e que seu lucro é mínimo.

Saí dali um pouco triste e pensativa. Lembrei-me de minha infância e de juventude, quando toda a família e os amigos comíamos uvas à vontade, debaixo da parreira de nossa casa. Uvas brancas e rosadas, cujas sementes foram plantadas por minha avó.

Mesmo depois de adulta, casada e com filhos, sempre que voltava à casa, nas férias de verão, corria ao quintal para colher as uvas maduras e doces. O ritual era sempre o mesmo: delicadamente apanhava as uvas, enchia uma enorme bacia, lavava um a um os cachos e colocava-os em uma vasilha para serem saboreados por toda a família. Enquanto colhia, o coração transbordava de alegria e de reverência ao criador de todas as coisas.

Talvez as pessoas não entendam. Talvez me julguem sovina,"mão de porco" ou "pão-dura", por não ter concordado com os atuais preços praticados, tendo-me negado a comprar um cacho, que fosse, para os rituais de final do ano. Mas não consegui aceitar tal imposição de mercado.

Voltei para casa com outras frutas. Não segui o ritual, não comi uvas e nem guardei as sementes. Mas preparei, com o mesmo esmero, a ceia do Ano Novo. Partilhei instantes de paz e de harmonia em um jantar a dois. E convencida fiquei de que o que vale a pena são os momentos vividos. Uvas, minhas frutas preferidas, vou saboreá-las o ano todo, com certeza, sem de ter de pactuar com a exploração.

Feliz 2012!