quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Retrato de família



"Tão bela flor, quero-mana,
tão bela flor, é verdade,
do que é ruim ninguém  se lembra,
do que é bom se tem saudade.
Minha terra, minha terra,
Ela lá e eu aqui. Ai!
Por muito bem que me tratem.
                  Não me esqueço onde eu nasci. Ai!..." 
 - Quero-mana, dança do folclore do Rio Grande do Sul

Em meus álbuns de família há uma foto que, de vez em quando, fico observando para fazer novas leituras sobre aqueles que me antecederam em minha família: uma foto em preto e branco, amarelada pelo tempo, estampada, em papel grosso, ainda bem conservado. A grafia caprichada de meu pai, na parte de trás da foto, identificava: Fazenda da Armada -1932
 
Como eu havia prometido, há algum tempo, pintar um quadro para homenagear e presentear meu irmão, logo pensei: será sobre essa foto, uma imagem bem significativa, que nos remete às nossas raízes gauchas.

Ela mostra a fachada da sede da propriedade, durante uma festa, cujos presentes perfilaram-se para sair no retrato, uma situação comum entre os fazendeiros da região. Seria um casamento, um aniversário, ou, simplesmente, uma reunião de amigos e vizinhos? Não importa. O mais importante é o que representa e guarda sobre meus ancestrais. 

No interior do Rio Grande do Sul, naquela época, era comum a realização de festas para reunir familiares e vizinhos, como forma de amenizar um pouco a solidão dos que viviam praticamente isolados em suas terras. Em geral, os vizinhos moravam a léguas de distância e encontravam-se somente em ocasiões especiais para colocarem em dia os "causos" que viveram ou presenciaram ou, ainda, prestarem algum tipo de solidariedade. Para esses eventos, considerados ocasiões especiais, as mulheres colocavam-se dentro de seus melhores vestidos, perfumavam-se e penteavam seus cabelos armados por uma travessa ou enfeitados com flores artificiais. Os homens compareciam muito bem trajados, muitos deles pilchados (indumentária gaúcha) e não dispensavam o uso do chapéu.

Nessas festas, a comida principal seguia a tradição, até hoje ainda conservada, o churrasco. Mas muitas vezes não podiam faltar outros quitutes da culinária gaúcha, como o quibebe de abóbora, o pão de milho, o feijão mexido, o sarrabulho, a morcilha e a lingüiça. Com a carne bovina também era e é feito ensopado de aipim, cozido com pirão, guisadinho com abóbora ou batata ou ainda o famoso arroz de carreteiro. E as sobremesas? Ambrosia, doce de abóbora, em calda, doce de figo, pessegada. Tudo preparado em grandes tachos de cobre. 

Tudo isso acontecia tendo como o palco aquela imponente construção do século XIX. Assim como um livro, uma construção revela, através de suas pedras, madeiras e demais materiais, a própria história de quem abrigou e a sucessão de experiências humanas através dos ambientes construídos e alterados ao longo do tempo.

A partir de então a construção permaneceu com suas características originais inalteradas, fruto de influências arquitetônicas coloniais, a partir de um desenho retangular, de linhas assimétricas, que marca a influência luso-brasileira. O telhado daquele casarão ainda era feito com a utilização de telhas construídas artesanalmente, cuja curvatura era moldada pela circunferência das pernas de seus artesãos. Daí surgiu a expressão “nas cochas”.

Enquanto minha família mantinha um círculo de relacionamento estritamente limitado aos seus domínios, muita coisa começou a acontecer no contexto onde ela estava inserida. Levados pelo incremento desenvolvimentista da Era Vargas, a partir da década de 30, os setores agrícolas começaram a ganhar alento, com notáveis repercussões econômicas, políticas e sociais. 

A partir da década de 30, a tração animal passou a ser substituída pela máquina, surgindo, no Rio Grande do Sul, a primeira colheita mecanizada de arroz no Brasil, abrindo uma economia de escala que ocasionou o fim do feudo e o nascimento da agroindústria.

O trabalhador rural viu o seu esforço ser racionalizado e a produtividade aumentar, assim como a melhoria nas condições de trabalho, mas, também, começou a ser incrementado o êxito rural cujo principal efeito foi o fracionamento ou a desagregação familiar, fatores que, de certa forma, também explicam o que passou a acontecer com a Fazenda da Armada e o papel que desempenhava na vida familiar.

A construção das novas sedes de fazendas gaúchas também passou a sofrer inspiração de uma nova arquitetura, que veio mais tarde influenciar a construção de Brasília, baseada nas influências de Courbusier e no emergente trabalho de Lúcio Costa. Eram as duas faces de uma mesma moeda: o novo e o velho se alternando.

Toda essa dinâmica pode explicar a migração de meus antecessores para centros maiores e, desses, para a Capital do Estado, Porto Alegre. O patrimônio foi partido e repartido. E hoje é lembrado somente através de fotos como essa. Não tive mais informações do que aconteceu com a Fazenda da Armada após tanto tempo.

Apesar de se encontrar em razoável estado de conservação, a foto, em questão, foi elaborada dentro de um rudimentar equipamento fotográfico. Por questões de luminosidade e de imprecisão das lentes, a fotografia deixou de mostrar traços e feições dos personagens, evidenciando apenas contornos e perfis. Por isso aceitei o desafio de inserir cores nos tons originais da foto, cinca claro e cinza escuro, estilizando a figura humana, sem, contudo, deixar de elevar o espírito que marca aquela época, onde muitos dos personagens, na foto original, são meus antepassados.

Para retratar a Fazenda da Armada, uma homenagem que presto ao pai de minha avó paterna e seus agregados, utilizei tinta acrílica nas cores e tons marrom e bege, para dar idéia de antiguidade. Reproduzi somente as silhuetas dos personagens, para evidenciar o espírito humano materializado.

A tudo isso é acrescido um fato: além de constar em meus álbuns, a foto também ganha nova vida, a partir de um quadro que nada mais é do que o meu tributo a todos aqueles que tornaram possível esse momento de criação e, espero, também de exaltação, a partir do momento que meu irmão fixar meu trabalho em sua casa, para dar cor aos momentos vividos em 1932 e lembrar que, na construção de sua identidade, a vida de meu irmão já estava presente na sucessão de acontecimentos ocorridos desde aquela época, eternizados neste instantâneo, dentro de um tempo e de um espaço em constante transformação.




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