sexta-feira, 2 de abril de 2010

Na fazenda



Todos os anos passávamos o mês de janeiro na Fazenda São Jorge, no Pântano Grande, então deistrito do município de Rio Pardo. Tio Oscar, como chamávamos o proprietário da fazenda, enrolava com as mãos amareladas o cigarro de rolo tão lentamente como conversava com a peãozada à noite no galpão. Gostava de contar “causos” engraçados acontecidos pelas redondezas dos quais ele mesmo ria. De vez em quando, cuspia no chão de terra, rigorosamente varrido. Andava sempre de bombachas e chinelos de couro, aqueles típicos do gaúcho. Raramente usava sapatos ou botas. (Acho que quando os usava, doíam-lhe os pés, por falta de costume).

Tudo lá era bem limpo. Sua esposa primava pelo capricho. O quintal em vota da casa era varrido todos os dias, parecia um tapete de tão limpo. A casa era simples, mas acolhedora. Sempre tinha uma cama pronta com lençóis branquinhos e bem passados para quem chegasse para passar a noite ou ficar por vários dias. A mesa sempre farta, era arrumada com toalha engomada e talheres brilhando.

Era uma festa os verões que passávamos na fazenda. Durante o dia, corríamos explorando tudo. Andávamos a cavalo. Tomávamos banho à tarde na sanga que levava água do açude para a lavoura de arroz. Comíamos até nos fartar as frutas apanhadas no pomar, principalmente pêssegos. A lida do dia-a-dia também nos encantava: a ordenha das vacas no curral, a tosa de ovelhas, a doma dos cavalos chucros, o banho do gado para matar os carrapatos, a marcação do gado que era adquirido. Dava uma pena ao ver o couro ser queimado com o ferro quente! Quando iam tosar as ovelhas, corríamos para olhar os esquiladores manejando com destreza as tesouras cortando a lã em um só compasso. Como ficavam feinhas, as coitadas das ovelhas, despidas, sem as lãs encaracoladas.

Naquela época, não havia luz elétrica na fazenda. À noite a criançada se juntava em frente à casa e brincava de polícia e ladrão, fantasma, concurso de calouros e outras “invencionices”. A lua e as estrelas iluminavam nossas brincadeiras. De vez em quando aparecia alguém que tocava violão ou acordeão. Começava a cantoria e aí sim a festa ficava completa. Às vezes também os guris maiores colocavam lençóis por cima do corpo, viravam “fantasmas” e vinham nos assustar.

Aos domingos, o passeio era esperado com ansiedade: fazer pic nic às margens do rio Capivari, a alguns quilômetros dali. As mulheres preparavam a comida, levavam doces, sucos, pães caseiros de todos os tipos. Os homens escolhiam os melhores pedaços de carne para o churrasco. Ficávamos o dia inteiro, alternando o banho nas águas claras do rio com os quitutes. Voltávamos à tardinha, encarapitados na carroceria da camionete, Chegávamos na fazenda mortos de cansados e a cabeça cheia de sonhos. Dormíamos o sono dos deuses...

De tempos em tempos, a imagem de Nossa Senhora percorria as casas das fazendas. Quando chegava, a dona da casa que era uma católica muito fervorosa, reunia o pessoal todo – família, hóspedes, empregados - na sala para rezar o terço. Todos acompanhavam compenetrados e com fervor. Até as crianças, sem risos ou brincadeiras.

De vez em quando, tinha corrida de cavalos, as “carreiras em cancha reta”, cavadas no chão de terra vermelha, bem demarcadas na própria fazenda. Vinha gente de todos os cantos: peões pilchados, garbosamente montados em seus cavalos; mulheres com vestidos coloridos e cestas cheias de sanduíches, bolos pães e doces, crianças que corriam por todos os lados em suas brincadeiras e risadas. Eram dias cheios, coloridos e alegres.

E os doces? Figadas e pessegadas preparadas em tachos de cobre, mexidos com enormes colheres de pau, em fogo feito no chão. As mulheres ficavam mexendo a massa até ficar no ponto. A criançada sentia o cheiro de longe e, de vez em quando, chegava perto para dar uma “provadinha” naquelas delícias. Depois elas despejavam tudo em latas enormes que guardavam para serem consumidos durante o ano todo. Lembro que quanto mais tempo passava, mais saborosos ficavam: açucarados por fora e macios por dentro.

Nos feriados da Semana Santa, também íamos para lá. Era tradição colhermos “macela” nos campos, na sexta-feira santa. Não sei pra que servia a macela, acho que era para fazer chá e encher travesseiros. Sei que é uma planta nativa que tem o poder de curar. No sábado de aleluia, acordávamos cedo com o mugido do gado no curral. Os peões escolhiam uma ovelha gorda para o sacrifício. Eu não tinha coragem de assistir o abate. Morria de pena do animal, nem conseguia comer o churrasco assado cuidadosamente no fogo de chão e fartamente saboreado por todos. Mais tarde,compreendi a dimensão da oferenda que o animal fazia, entregando a sua vida para nos alimentar. É a verdadeira doação da própria vida pela do outro.



4 comentários:

  1. Oi dinda! Adorei o blog e as histórias que contou aqui. Tô na espera por mais, hein?
    Beijo,
    Beta.

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  2. Muito bom. Continua escrevendo.
    Beijo
    Beto

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  3. Muito legal ver nossa história vista por outros olhos.Adorei o Blog.A foto está linda.
    Bjs

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  4. Celinha,muito boas as lembranças dos tempos idos,
    alguns compartilhados e outros não, por ainda não ter nascido. nos conte mais para poder curtir contigo.caso queira se lembrar de alguns casos estou a disposição.Espero novidades.
    beijos, Sergio

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