domingo, 7 de novembro de 2010

Um drama musical em minha vida

Os amantes da boa música sabem que há gêneros imortais. Não morrem, simplesmente se transformam, para continuar mais atuais do que nunca, como é o caso da ópera. Em plena era do raggie, do hippie hop, do samba raggie, a ópera se transmuta, para provar que tudo o que é bom fica eternizado no imaginário daqueles que sabem a diferença entre música de consumo e melodias que transcendem a dimensão quotidiana do ser humano, para simplesmente ser.

Quando todos pensavam que a ópera era uma mera peça de museu, guardada nas reminiscências dos mais velhos, ela rejuvenesce, a partir de meados do século passado. Os mais eruditos contemporâneos enaltecem os principais compositores de ópera, dentre outros, John Adams, Tobias Picker, Jake Heggie, André Previn, Mark Adamo e Kaija Saariaho, que mantêm a produção operística continua, intensa, embora poucas delas consigam se firmar no repertório das casas de Ópera.

Mas quem é mais velho sabe de suas origens, como também empregar todo o seu poder da imaginação e de um entendimento da linguagem simbólica, que está por trás de um drama encenado através da música, para chegar a seus reais significados. As principais óperas conhecidas que adotam elementos típicos do teatro, tais como a cenografia, vestuário e interpretação, merecem a presença de uma orquestra sinfônica completa para lhes dar amparo.

E, para entendê-las é preciso, mais do que tudo, sensibilidade, senso de imaginação, desprendimento da realidade vivencial que massacra por seu quotidiano de rotinas e mesmices. Foi o que aprendi com meu tio Mario, um dos irmãos mais velhos de minha mãe.

Ele possuía uma bem organizada coleção de óperas em discos de vinil de 78 rotações guardados zelosamente em um armário de cedro que ocupava lugar de destaque na sala, como se ele quisesse passar o recado, a quem o visitava, de que móveis e objetos de decoração são menos significativos do que as ferramentas para se chegar à alma humana.

Meu tio Mário guardava, ao lado do armário, principal e oponente de sua sala de visitas, a eletrola, equipada com potentes amplificadores, para que ele pudesse, em seus momentos de lazer, sentado em sua poltrona predileta, se deliciar ao som de Rossini, Verdi, Ponchielli, Wagner, Bizet, Mozart, Vila Lobos e tantos outros.

E ele ficava, ali, absorto, por horas e horas, de olhos fechados, imaginando as histórias vividas pelos personagens de La Traviata, Carmen, Aída, Tristão e Izolda, A Flauta Mágica, O Barbeiro de Sevilha, La Gioconda, O Guarani, só para citar algumas de sua coleção.

Por muitas vezes, cheguei a imaginar seus momentos de divagação associados à memória que ele guardava de seu irmão Augusto, falecido aos 22 anos, no Rio de Janeiro, quando estudava na Academia Militar. Minha mãe contava que Augusto era barítono e sonhava um dia ser cantor de ópera. Sonho interrompido pelo estampido de um tiro... ( Bem, mas essa é outra história). Mas o certo é que ninguém conseguia saber por onde sua alma viajava, quando abria as portas de uma intensa e bem vivida experiência no interior de si mesmo.

O que todos nós, seus familiares presenciavam era, sim, seus momentos de êxtase. Ninguém se atrevia a chamar-lhe a atenção ou mesmo ousar a fazer qualquer ruído, enquanto se entregava aos ditames das músicas que lhe falavam direto ao coração. O melhor era respeitar o seu deleite.

Eu, quando criança ou adolescente, pouco entendia o significado daquelas letras, em sua maioria cantadas em italiano. Apenas quedava-me, em silêncio, deixando-me, também, impregnar pelas melodias. Elas falavam diretamente à alma, calavam bocas e espargiam sentimentos que iam, aos poucos, preenchendo todos os espaços da casa. Em minha singeleza infantil ou de adolescência, aprendi a educar o meu ouvido para o que não precisava de razões, mas sim sentimentos de empatia. Antes de educar a minha mente, aprendi a aquietar a minha alma, simplesmente esvaziando-me de tudo para me deixar impregnar pelos sons que saiam da casa de meu tio Mário.

Ele herdara essa sensibilidade e bom gosto pela música de seus pais. Minha mãe me contava que quando era criança, seus pais, irmãos e amigos costumavam se reunir, à noite, em casa, para tocar piano e cantar. Faziam os chamados saraus.Tais eventos musicais eram um hábito cultuado por famílias burguesas do início do século XX, que ainda não possuíam a televisão e seus sistemas alienantes, para viverem tão somente das manifestações culturais e artísticas que transcendiam o tempo e o espaço. Sem consumo, sem imediatismo, sem conteúdos levados a não pensar ou não questionar o sistema que molda o status quo vigente.

Assim, a ópera possuía um outro significado no processo de formação do ser humano, desde o seu surgimento, no século XVII, quando passou a ser apreciada, na Europa, principalmente pela burguesia e aristocracia. Amante dessa expressão artística, sempre achei que meu tio Mário era descendente direto dessas castas aristocráticas, dado seu ar e o seu olhar refinados, pois, em seu contato com as pessoas era extremamente atencioso, amoroso e educado. Um verdadeiro gentleman.

E era dessa forma que ele dava sua contribuição à minha formação. Sua erudição o levou a tornar-se uma pessoa sensível aos que se encontravam a sua volta e, por sua perspicácia, sempre sabia dar o conselho certo, a palavra apropriada, o afeto indispensável em qualquer momento em que eu precisasse de sua presença. Nunca o vi levantar a voz para quem quer que fosse mantendo sempre o seu autocontrole e o equilíbrio em situações de confronto. Impunha-se por sua altivez e coerência.

Não por acaso minha mãe era muito apegada a ele. Considerava-o um segundo pai. Quando eu nasci, meus pais convidaram-no, juntamente com sua esposa Aracy para serem meus padrinhos de batismo. E ele cumpria muito bem com seus votos. Todo o mês além de mostrar o boletim para meu pai, tinha de apresentar-lo a ele também para que aprovasse minhas notas escolares. (Ainda bem que eu não os decepcionava!).

Pena que esses velhos hábitos estão morrendo. As cidades coisificaram as relações. Famílias enormes são cada vez mais raras. O que dizer, então, da presença de padrinhos na vida de crianças e adolescentes? Talvez, se os padrinhos continuassem a ter o seu papel na formação dos mais novos, quem sabe teríamos adultos mais completos. Quem sabe esses ajudariam mais na educação e formação integral do ser humano, a partir de experiências afetivas mais completas, base para a constituição de indivíduos mais equilibrados e centrados em si mesmos.

Felizmente olho para o meu universo e constato que também tenho uma afilhada, a quem amo e me preocupo com seu futuro. Assim como fez um dia meu tio e padrinho Mário, cuja presença me foi privada, quando faleceu vítima de complicações com diabetes e pela tristeza provocada pelo falecimento de seu filho Milton. Meu consolo é saber que, quando hoje ouço uma ópera, o sinto, falando-me de coração a coração, e tanto ele quanto eu nos encontramos, longe do tempo e do espaço, onde a vida não tem forma, mas, simplesmente, emoção eternizada que guarda puras melodias e nos remete ao que há de mais eterno em nossa existência.

Um comentário:

  1. Com certeza é por estes exemplos de nossa infância e adolescência que a música me traz ótimas lembranças. Também o apego familiar vem vindo desde aquela época o que acho que continuamos transmitindo para nossos filhos e futuros netos.

    Grande beijo, mana.

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